Round 6: 2ª Temporada – Mantendo excelente ritmo e qualidade na escrita

Quando a Segunda Temporada de Round 6 (Ojing-eo Geim, 2021 -) foi anunciada pela Netflix, fui uma das primeiras a ter dúvidas sobre a continuação. Para mim, naquele momento, soava como uma medida desesperada de fazer ainda mais dinheiro, já que a primeira temporada arrecadou quase 1 bilhão de dólares. Claro que a Netflix faria qualquer coisa para conseguir mais dinheiro em torno do nome da série (e Round 6: O Desafio é uma grande prova disso). Porém, minha surpresa foi enorme ao assistir uma segunda temporada coesa, interessante, cativante e surpreendente!

Ao rever o final da 1ª temporada para relembrar melhor alguns plots principais, afinal já faziam três anos desde o final da T1, percebi que meu choque com a série talvez tivesse enganado meu cérebro. A 1ª Temporada deixa muitas pontas soltas, mais do que eu lembrava, dando a entender que talvez uma segunda temporada sempre esteve planejada.

Uma das coisas mais impressionantes sobre ambas as temporadas de Round 6, é, definitivamente, as personagens. Mesmo com pouco tempo de tela (algumas possuem não mais do que 5 minutos), as personagens são cativantes e você genuinamente se importa com todas. Todas são profundas, com problemas únicos, cheias de nuances e com histórias diferentes. Nenhum tempo de tela é desperdiçado e nada é em vão. O roteiro aproveita de todas as brechas para apresentar todas de forma rápida, mas extremamente eficiente, fazendo você ficar curioso com o rumo que aquela personagem tomará e qual sua próxima decisão. Inclusive, na 2ª Temporada da série, há ainda mais personagens: já conhecemos o jogo, assim como Gi-hun (Lee Jung-jae), então não há repetições desnecessárias. A ideia de fazer o primeiro jogo, o famoso “Batatinha Frita, 1, 2, 3” com um plot twist, onde Gi-hun resolve tentar salvar o máximo de pessoas que consegue, ilustra bem o que essa temporada pretendia. Ao chacoalhar ainda mais a estrutura do jogo e questionar ainda mais sobre as intenções de seus criadores, e portanto, do capitalismo em si, a série ainda acha tempo para dar mais importância às conexões humanas. 

A jogadora Nº 120 e a comunidade LGBT+

Assim que a 2ª Temporada estreou, surgiu a polêmica sobre a Jogadora nº 120, uma mulher trans, ser interpretada por um homem cisgênero. Quase que imediatamente, a Comunidade LGBT+ encheu o X, antigo Twitter, e diversas outras redes sociais questionando a decisão da série e como isso na verdade era algo ruim. Acho importante dizer aqui duas coisas: 1) Sim, eu acredito que personagens trans possam e devam ser interpretadas por pessoas trans, embora acredite também que pessoas trans não devam ser limitadas a estes papéis. E 2) eu sou fã de kpop desde 2018, e desde então, como em todo assunto que me interesso, eu gosto de me aprofundar. Ser kpopper também me levou a conhecer a história da Coreia do Sul, a Guerra das Coreias e outros contextos políticos, sociais e históricos da Coreia do Sul em si. Então, todas as opiniões a seguir, são baseadas em pesquisa e convívio dentro de uma comunidade há mais de 5 anos, além, óbvio, do estudo de Cinema que eu possuo.

Assim que a polêmica surgiu, meu primeiro pensamento foi como a Coreia do Sul é um país extremamente conservador e homofóbico. Desde que entrei no mundo do kpop, uma das coisas que mais me chamou atenção foi justamente o quanto a Coreia é um país conservador, onde não só há uma cobrança extrema irreal em cima de idols (onde eles precisam ser magros, brancos – mesmo sendo asiáticos -, não se envolver em nenhuma polêmica e etc), como há um sentimento geral onde a população também precisa ser assim. É comum encontrar fotos de idols editadas, pela própria empresa que eles fazem parte, embranquecidos (o famoso “whitewashing”, onde pessoas que possuem outro tom de pele, tem sua pele embranquecida, caso que aconteceu até mesmo com Zendaya na mídia coreana). Há casos de homofobia também, como por exemplo o que aconteceu com Holland que foi atacado na rua por homem em 2022 por ser abertamente gay ou quando em 2023 e 2024, o Governo da Coreia do Sul proibiu que a Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ acontecesse em frente a Câmara Municipal em Seul, capital do país, alegando “conflitos de agenda”, mesmo os organizadores da Parada tendo dito que haviam reservado a praça conforme a lei. Portanto, quando li a declaração do diretor Hwang Dong-hyuk à TV Guide falando sobre porque não escalou uma atriz trans para interpretar a Jogadora nº120, as coisas fazem sentido para mim: “No começo, estávamos fazendo nossa pesquisa, e eu estava pensando em fazer um elenco autêntico de um ator trans. Quando pesquisamos na Coreia, não há quase nenhum ator que seja abertamente trans, muito menos abertamente gay, porque, infelizmente, na sociedade coreana atualmente, a comunidade LGBTQIA+ ainda é marginalizada e mais negligenciada, o que é de partir o coração”.  Na Coreia do Sul, país onde o casamento homoafetivo sequer é legalizado, pessoas LGBT+ não são vistas com bons olhos, aliás bem o contrário. Se você conhece o mínimo de contexto cultural e social da Coreia do Sul, você entende que uma atriz trans nesse papel de enorme destaque poderia sofrer diversos ataques não só online, mas também ameaças à sua integridade física. A série como um todo poderia sofrer ataques, represálias e certamente todos os atores envolvidos também poderiam sofrer ataques por terem “consentido” em atuar ao lado de uma pessoa trans. Ou seja, o protesto de pessoas do Ocidente, que não entendem completamente o contexto da sociedade coreana, onde de acordo com uma pesquisa de 2024 realizada pela Statista, a Coreia do Sul teve a menor proporção de pessoas que se identificaram como LGBT entre 43 países, com apenas 3% da população, ao contrário do Brasil onde esse número chega a 12% por exemplo, é, no mínimo, incoerente e demonstra uma falta de sensibilidade.

Dado o contexto sociopolítico e histórico da Coreia do Sul, é hora de falar sobre a escrita da personagem em si. É notável o esforço do roteirista e diretor em escrever uma personagem trans que fosse REAL. Aqui, Hyun-ju (Park Sung-hoon), a jogadora nº120, não é escrita como “a boazinha” (ela inclusive vota para os jogos continuarem DUAS vezes!), muito menos “a vulnerável” (Hyun-ju é crucial para a execução do plano dos jogadores no final da 2ª Temporada, colocando em prática seus aprendizados durante seu tempo no exército), ou ainda como “a sofredora”, onde apesar de sim, sofrer transfobia fora e dentro do jogo por outras pessoas, ela jamais se coloca numa posição de “sofredora” e sim de uma personagem que tenta ignorar os ataques que sofre e quer apenas ser feliz. Hyun-ju é uma representação melhor do que diversas outras personagens trans que já vi na mídia, MESMO sendo interpretada por um homem cisgênero. A nº 120 é escrita como QUALQUER outro personagem, com falhas, acertos e erros e principalmente com uma vontade de ser feliz em um mundo onde o capitalismo impede essa felicidade de existir. Hyun-ju inclusive tem se tornado uma das personagens preferidas de diversos telespectadores, justamente porque é bem escrita. O fato é que ela é bem escrita e é escrita também de forma RESPEITOSA à Comunidade LGBTQ+, inclusive onde Hwang Dong-hyuk tem a delicadeza de não colocar “piadas baratas” com a personagem. Desde o primeiro segundo em tela, Hyun-ju sofre, sim, transfobia, mas isso é imediatamente remediado, ainda que de forma torta, por outro personagem. A sutileza da escrita dessa cena por si só já prova o ponto de que a inserção de Hyun-ju na série, ainda que interpretada por um homem cis, é recompensadora e possui um efeito muito mais positivo do que negativo. Em tempos de ascensão fascista mundial, é necessário reconhecer vitórias. E definitivamente a escrita feita aqui para a Jogadora nº120 é certamente uma vitória. Não usem uma visão Ocidental para tratar sobre a Coreia do Sul. Essa visão é distorcida, e te impedirá de aproveitar a personagem por completo por conta de um detalhe que é facilmente recompensado por uma escrita brilhante e muito mais positiva do que tóxica.

Considerações finais

Round 6 não se tornou um fenômeno da Netflix à toa, seu roteiro instigante, que leva o espectador a se importar com as diversas personagens em tela e a combinação de uma atuação quase impecável de uma quantidade quase absurda de atores e atrizes, faz com que a série seja uma das melhores da plataforma, e mesmo fora dela. A escrita estruturada de um roteiro que sabe o que quer fazer com cada uma das personagens e uma atuação com intenções muito bem definidas e muito bem dirigidas, torna a série um marco cultural, tanto na Coreia do Sul quanto mundialmente. Tudo isso combinado à um mundo bem estabelecido, que quando chegamos à Segunda Temporada, você se lembra muito bem de como o jogo funciona e tudo o que Gi-hun passou ali. Os jogos são quase um organismo vivo, onde entendemos também melhor o que faz o jogo se manter vivo, com a inserção de uma personagem “soldada”, No-eul (Park Gyuyoung). O que traz ainda uma outra dinâmica, ampliando o olhar do espectador sobre como os jogos funcionam, além de ampliar uma trama previamente estabelecida na primeira temporada e também acrescentar duas dinâmicas ainda mais complexas com No-eul, dentro e fora dos jogos. Essas expansões da trama não são só mérito do roteiro, mas também do Design de Produção, do Departamento de Arte e da Fotografia da série, que, juntos, criam um ambiente marcante, bem definido e facilmente reconhecível. Mesmo fora dos jogos, os elementos visuais desses três departamentos da série combinados, trazem uma sensação de familiaridade mesmo à quem nunca esteve na Coreia do Sul, e ao mesmo tempo apresenta muito sobre o país, seus costumes, comidas e bebidas distintas, um primor inclusive alcançado por outros “k-dramas” (como as séries sul-coreanas são chamadas), além de outros elementos distinguíveis que fazem uma diferença brutal nos episódios mais ao fim desta temporada, provando, assim, que o investimento do país em audiovisual realmente está valendo a pena.


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