Luiz Melodia: No Coração do Brasil – Música como resistência

Após assistir o documentário sobre a vida e a obra de Luiz Melodia, percebi que o músico levava no próprio nome artístico – que herdara do pai – o símbolo de uma luta. Pois é em sua voz, em sua poesia e em sua música, que Melodia carregava suas armas. O documentário de Alessandra Dorgan reúne imagens de arquivos pessoais e de época à várias falas do artista, traçando sua trajetória desde o Morro de São Carlos, no bairro Estácio, no Rio de Janeiro, até os últimos anos de sua carreira, cheia de percalços, altos e baixos.

Logo de cara, Melodia, com sua voz, e Dorgan, com sua montagem, nos contam sobre como o músico foi descoberto e adotado como compositor nos anos 1970 por grandes nomes da Tropicália, como Waly Salomão e Torquato Neto, que o apresentaram a ninguém menos que Gal Costa e Maria Bethânia. Gal gravou uma das canções de maior sucesso de sua carreira e que depois daria nome ao primeiro LP de Melodia, Pérola Negra, em 1973, e Bethânia interpretou Estácio, holly Estácio logo em seguida, o que alavancou o nome do músico a um dos grandes expoentes da MPB naquela época. Em 1975 foi um dos finalistas do Festival Abertura, da TV Globo, com a canção Ébano, o que o tornou conhecido do grande público, mas o que realmente fez o nome e a voz de Luiz Melodia brilharem nas rádios e na TV foi a música Juventude Transviada, que fez parte da trilha da novela Pecado Capital (1975).

Mas o que me chamou mais a atenção – como alguém que já conhecia o som de Luiz Melodia, mas não sua história -, foi que já em seus primeiros anos de carreira, com um potencial tão promissor, as gravadoras e a mídia começaram a taxá-lo de “maldito”. Isto porque Melodia sabia bem o que queria com sua arte e não se dobraria a desmandos da indústria musical, que já o tentava encaixar no estereótipo do “negro de morro carioca que só faz e toca samba”, chegando ao ponto de se criar o boato de que o cantor não tinha interesse no samba, o que contraditoriamente seria negar suas próprias raízes e uma de suas maiores influências. Fica claro quando vemos com o olhar de hoje que existia um lugar ao qual Melodia deveria ser designado, e o que o tornou “maldito” foi exatamente não aceitar essa designação, resistindo através de sua voz potente e sua música.

Cabe lembrar que estamos falando dos anos de chumbo no Brasil Militar, o período mais violento da Ditadura Civil-Militar e quando as perseguições à arte davam o tom da repressão, e mesmo que as letras de Melodia não fossem exatamente “de protesto” elas simbolizavam sim uma resistência, um grito poético de liberdade, muitas vezes emudecido por uma indústria e por uma sociedade conservadora, onde o aceitável era o tradicional. As consequências dessa “maldição” perseguiram Melodia pelo resto de sua carreira, ainda que o sucesso como astro nunca tenha sido seu desejo. Mudou-se então para Salvador após o estrondo de Juventude Transviada onde passou um tempo até lançar seu disco Mico de Circo em 1978. Entretanto fica óbvio que o músico, mesmo hoje sendo reconhecido como um dos grandes nomes da MPB, teve alcance aquém do esperado para um artista de seu quilate.

Mas o documentário não se prende a essa dita “maldição”, ainda que adote um tom levemente pesaroso. Me parece até que ao mesmo tempo que lamenta os descompassos que o músico teve em sua carreira, exalta essa mesma carreira, o que acho bastante adequado, já que, mesmo sendo “maldito”, a resistência de Melodia o levou a composições e interpretações sublimes e memoráveis, sempre demonstrando que a palavra “marginal” pode ter um significado bastante elogioso, firmando ainda parcerias de sucesso com outros “malditos” em sua jornada, como Jards Macalé e Itamar Assunção, além de apresentar-se ao lado de nomes como Zezé Mota e Elza Soares.

Luiz Melodia – No Coração do Brasil (2024) é um filme comovente, mas também ilustrativo, nos revelando um retrato de um país através de um de seus maiores artistas, de sua carreira muitas vezes atropelada, o retrato de uma sociedade que muitas vezes é míope para sua própria arte. Mas também de uma arte que tem como natureza a resistência, e se para isso e por isso precisamos lutar nós temos um arsenal de nomes gigantes que fizeram e fazem de sua arte nossa maior arma.


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