Hollywood e sua crise criativa (ou seria uma crise de ganância?)
Algo que é sintomático de uma tal falta de criatividade hollywoodiana é que tem sido brandido aos quatro ventos e a olhos vistos já há algum tempo que das principais animações lançadas até o momento em 2024 a grande maioria delas seja de continuações de filmes de grandes sucessos (algumas delas já em sua quarta ou quinta continuação). É óbvio que se assustar com a gana do maior polo industrial da indústria cinematográfica do mundo (ou ao menos o mais conhecido) seria muita inocência de nossa parte, afinal, o objetivo primeiro dos grandes estúdios hollywoodianos não é outro senão o lucro, o maior possível, e não há maneira mais certeira de obtê-lo que não seja usando ingredientes que antes já haviam funcionado. Dito isto, começo a refletir que, na verdade, não é falta de criatividade o que assola Hollywood, e muito menos isto seja um sintoma recente, mas sim um excesso de ganância, que sempre existiu por lá, mas que com o avanço tecnológico e a velocidade das produções tem se tornado cada vez maior. E as consequências disso podem ser roteiros mal trabalhados, pressão descomedida em profissionais que se veem cada vez mais esgotados, entre outras coisas.
Toda essa conversa apenas para afirmar o quanto fico feliz quando um grande estúdio, com alcance global, opta por se arriscar e lança algo minimamente novo. Com apenas 10 anos de existência, a Dreamworks Animation já coleciona uma gama de sucessos, alguns deles se tonando franquias aclamadas, estratégia comum para um estúdio gigantesco como já é. Esses bem-sucedidos e lucrativos filmes permitem que o estúdio faça algumas tentativas mais ousadas, como recentemente fez com o ótimo, mas não muito inovador, Os Caras Malvados (The Bad Guys, 2022), que naturalmente já tem uma continuação anunciada; ou com Ruby Marinho, Monstro Adolescente (Ruby Gillman, Teenage Kraken, 2023), fracasso de bilheteria, de crítica e bom… de carisma. Por outro lado, lançado diretamente em streaming pela Netflix, tivemos o excelente Orion e o Escuro (Orion and the Dark, 2024), inspirado no livro infantil de mesmo nome e com um roteiro sensível do incrível Charlie Kaufman, o filme teve pouco reconhecimento do público, mas foi muito bem recebido pela crítica.
Uma aposta arriscada, mas nem tanto
A próxima aposta “arriscada” do estúdio é Robô Selvagem (The Wild Robot, 2024), inspirado na série de livros infantis de sucesso de Peter Brown e dirigido por Chris Sanders, responsável por dois dos maiores sucessos do estúdio: Como Treinar Seu Dragão (How to Train Your Dragon, 2010) e Os Croods (The Croods, 2013). O nome de Sanders já coloca a aposta em um patamar de menor risco, diferente de Orion e o Escuro, que marca a estreia de Sean Charmatz na direção, Chris Sanders já é um animador não apenas talentoso e reconhecido como experiente, mas ainda assim o fato de Robô Selvagem não ser exatamente uma animação com foco na comédia e sim na dramaticidade de seu enredo, mesmo que possua, claro, momentos cômicos, a meu ver torna a animação relativamente menos atrativa a seu principal público alvo, que são as crianças.
O filme nos conta sobre Roz (abreviação de “ROZZUM 7134”, seu nome original), uma robô que por acaso, após um acidente em seu transporte, acaba caindo, ainda desligada e dentro de sua caixa, em uma ilha não habitada por seres humanos, mas tomada por uma rica vida animal e vegetal. Roz é ligada acidentalmente por uma lontra curiosa e é quando nos é revelado sua programação principal: ela é um robô para realizar tarefas, criada para ser subserviente a qualquer custo e completar qualquer ordem que receba. O problema é que, numa ilha sem seres humanos para dar-lhe ordens Roz fica sem propósito, precisando apenas encontrar um meio de adaptar-se ao ambiente hostil em que se encontra e sobreviver até seus fabricantes seguirem um sinal de radar que ela precisa acionar para resgatá-la.
Uma família nada tradicional. Que bom.
É interessantíssima a forma como Roz analisa os sons dos animais com o objetivo de compreendê-los como uma oralidade com a qual pudesse se comunicar, o que resolve, de maneira criativa, um problema que o filme teria. Mas mesmo entendendo o que todos os animais que encontra pelo caminho falam a programação de Roz não poderia imaginar que sua primeira ordem/missão seria cuidar de um filhote de ganso até que o mesmo cresça e possa migrar junto com outros de sua espécie quando o inverno se aproximasse. O gansinho, que recebe o nome de Bico-Vivo, é então criado e protegido por Roz com a ajuda de Astuto, uma esperta raposa que planejava antes comê-lo quando ainda estava no ovo. Os três acabam por construir um laço familiar inicialmente inesperado, e quando Bico-Vivo já está em uma fase da vida que poderíamos chamar de “adolescência” Roz e Astuto precisam ensiná-lo não só a nadar e depois a voar, como também introduzi-lo aos outros de sua espécie.
O problema é que o acidente que ocasionou em seu nascimento acabou deixando-o fisicamente diferente dos demais gansos, e para piorar seu deslocamento, por ter sido criado por uma robô Bivo-Vivo acabou copiando os maneirismos “robóticos” de sua mãe. Tudo isso nos remete imediatamente ao famoso conto de fadas “O Patinho Feio”, do dinamarquês Hans Christian Andersen, que curiosamente já havia sido referenciado em outra obra-prima de Chris Sanders, Lilo & Stitch (2002). Deste modo Robô Selvagem traça mais uma vez o caminho de temas cada dia mais necessários como a constituição de famílias fora de um padrão “socialmente aceito”, mas que se fortalecem por um laço de carinho e compreensão que as ajuda a atravessar os maiores desafios que possam encontrar. Além disso temas como bullying, autoconfiança e autoestima e toda a complexidade que os envolve são abordados de maneira leve e de fácil compreensão para um público infantil.
Visual inovador e drama na medida
Para seguir uma demanda recente de animações que trazem novidades também em seus traços visuais, Robô Selvagem tenta fugir do 3D tradicional, criando uma texturização bastante sutil em seus personagens, mas que se mostra potente na criação de seus cenários, sabendo aproveitar a ambientação colorida daquela ilha selvagem em planos abertos e cheios de detalhes. Por outro lado, acho que o filme merecia uma trilha musical menos genérica e mais ambiciosa, que marcasse ainda mais o drama que o filme carrega, ainda que Kris Bowers não tenha feito um trabalho de todo ruim. O elenco de vozes originais é, como costumam ser nas animações de grandes estúdios, composto de estrelas de Hollywood, como Lupita Nyong’o, Pedro Pascal e Kit Connor, e certamente deve ser ótimo, mas tendo visto o filme já na dublagem brasileiro posso afirmar que nosso elenco se saiu muito bem. Elina de Souza, ainda que não tenha uma experiência longa em dublagem em animação soube dosar bem seu trabalho na difícil tarefa de dublar uma robô inicialmente sem emoções, mas que vai ganhando-as ao longo do filme; já Rodrigo Lombardi, responsável pela voz de Astuto, provavelmente foi escolhido pela sua experiência em dublar raposas, já que também foi a voz brasileira de Nick Wild, de Zootopia (2016); e fechando o trio principal temos Gabriel Leone como o ganso Bico-Vivo, praticamente fazendo sua estreia no mundo da dublagem.
Robô Selvagem é, portanto, mais um acerto da Dreamworks Animation em parceria com o animador Chris Sanders, que deve comover tanto os pequenos quanto os de mais idade, inevitavelmente. Um filme singelo, com uma mensagem simples, mas que nunca é demais, nos lembrando que laços são criados quando menos esperamos e que família pode ser muito mais do que imaginamos que possa ser.
VEJA TAMBÉM
Amigos Imaginários – Filmes infantis também precisam ser coesos
Suzume – Uma encantadora obra imperfeita
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.