Esse texto contém spoilers.
Entrevista com o Demônio (Late Night with the Devil, 2024), de Cameron e Colin Cairnes, é um filme sobre possessão. Acho importante começar com o óbvio, porque esse será um ponto muito importante para essa análise. Como bom amante do terror e do horror, já consumi uma leva bem variada de filmes de possessão, embora esse seja um dos meus sub-gêneros menos favoritos. E digo isso porque, depois de O Exorcista (The Exorcist, 1973), pouca coisa inspirada foi feita até então. E não estou dizendo que faltem filmes bons que tratam a temática, muito pelo contrário. Acredito que, constantemente, somos presenteados com filmes muito agradáveis, como Sobrenatural (Insidious, 2011) e Hereditário (Hereditary, 2018), e outros não tão agradáveis assim, como Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio (The Conjuring: The Devil Made Me Do It, 2021). Mas, no geral, até mesmo os melhores filmes que seguem essas narrativas acabam caindo em alguns clichês e sendo bem previsíveis. Uma rara exceção ao caso seria a franquia Evil Dead, que nos apresenta uma abordagem divertida e com ares de novidade mesmo no filme mais recente, de 2023. Porém, no geral, esses filmes acabam trazendo elementos bem comuns, dentre os quais eu gostaria de destacar o que mais me incomoda, que é o pânico satânico. Esse é um elemento datado, que hoje não funciona mais e tenta surfar na onde de sensacionalismo do final do século XX.
Tudo isso posto, o primeiro ponto que me interessou em Entrevista com o Demônio é justamente a abordagem diferenciada, que foge a essas convenções. Ambientar a trama totalmente dentro de um programa de auditório, centrando o drama na discussão entre um cético metido a Padre Quevedo e uma dita cientista paranormal é uma premissa que me interessou bastante. A dinâmica estabelecida pelo filme é ágil e o embate entre as visões opostas aguça a criatividade e nos faz querer ver aonde aquilo vai dar: embora saibamos que não será em nada muito bom.
De resto, o filme segue um roteiro previsível, sem elementos muito impressionantes. A presença de uma seita ocultista, o protagonista canalha disposto a ir às últimas consequências, os constantes avisos e sinais de que a situação está escalando para além do controle: tudo isso funciona, mas não encanta. As cenas mais interessantes do filme são, respectivamente, o momento de hipnose, com a ilusão dos vermes sendo bem grotesca; e a cena final de possessão. A caracterização do demônio, como sendo essa entidade feita de eletricidade, com a cabeça da jovem em chamas e partida ao meio, me pegou de um jeito muito positivo, me deixando animado e curioso para ver mais. Infelizmente, esse já era o final do filme.
As atuações são convincentes, mas não entregam nada muito além disso. David Dastmalchian convence como o apresentador sem escrúpulos que vai até às últimas consequências para recuperar a audiência de seu programa; Laura Gordon e Ian Bliss têm uma boa química como lados antagônicos da discussão e seus diálogos trazem boa parte do charme do filme; Rhys Auteri cativa como coadjuvante carismático e que tenta ser a voz da razão; em sua breve aparição, Fayssal Bazzi consegue deixar sua marca no filme, sendo um dos pontos altos. Talvez o ponto mais baixo tenham sido as atuações de Georgina Haig, que pouco aparece mas, quando o faz, parece estar sempre um tom acima do resto do elenco, ficando meio deslocada, e Ingrid Torelli, que convence como a jovem atormentada pelo espírito, mas cuja performance ainda carece de maturidade e polidez, o que é compreensível. Em partes, talvez o roteiro não tenha lhe dado o foco necessário, já que nesse longa a pessoa possuída tem bem menos destaque do que en seus irmãos do gênero. Nada que chegue a quebrar a experiência, mas foram elementos de um certo incômodo.
Agora vou chegar ao ponto que muitos que ainda não viram o filme devem estar curiosos: o tal uso da inteligência artificial na produção. Sinceramente, foi irrisório. E com isso não amenizo o impacto negativo dessa prática, à qual sou absolutamente contrário. O que quero dizer é que não entendo nem porque isso foi cogitado a ser usado. O uso de IA se deu para criação de três imagens, que aparecem nos intervalos do programa fictício que é o cenário principal do filme. Um uso tão breve que não se justifica de forma alguma. Acredito, porém, que tenha sido a soma de dois fatores: enxugar ao máximo o orçamento do filme e experimentar com o uso de IA, de maneira tímida, após as greves dos atores e roteiristas de Hollywood. No fim, um experimento frustrado, pois além de (com razão) atrair desgosto de parte do público, resultou em artes sem personalidade, sem graça e esquecíveis. E isso se destaca ainda mais em contraste com o trabalho de ambientação, que achei muito competente; porém, quando as cenas do estúdio cortam para as imagens que anunciam os comerciais, fica claro o descaso com que essas artes foram tratadas.
Sobre as revelações e viradas de trama, mais uma vez achei tudo bem consistente e atendendo ao que foi proposto, mas a impressão que tenho é que o roteiro ainda estava bruto, faltando ser lapidado. Inclusive, tudo é bem previsível e não fica nenhum mistério para quem assiste com atenção. A sequência inicial do filme já basicamente entrega a trama. Não acredito que isso seja um problema, se o foco fosse mais em expor os acontecimentos trágicos daquela noite, mas o roteiro me parece tentar forçar um suspensa sobre coisas que são muito óbvias. Talvez com um olhar um pouco mais carinhoso, as boas ideias tivessem sido executadas melhor. Muita coisa poderia ter bem mais potencial, porém ficou apenas na primeira camada. Como um todo, o longa serve um entretenimento interessante por uma hora e meia, mas parece ter sido produzido e executado às pressas, sem muito esmero e cuidado. No que se propõe a críticas sociais, o filme fica nas águas mais rasas, sem trazer nada de novo.
Já quanto a sequência final… Essa definitivamente é o ápice de boas ideias mal executadas. Após a possessão final, o protagonista se vê em uma série de cenas perturbadoras e ilógicas, que poderiam ter funcionado bem de outra forma. Entendo que o filme foi escalando e aquele deveria ter sido o momento do ápice de tensão e horror, mas não funcionou assim. A cena anterior foi tão bem executada, com a forma do espírito sendo revelada, que poderia ter acabado ali. Me parece que o roteirista não soube quando parar e tentou chocar demais com um drama não condizente com o tom do resto do filme.
No fim, ainda considero o saldo positivo pois consegui me manter entretido e curioso durante a maior parte do tempo. Os pontos baixos incomodaram, mas a tentativa da premissa de fugir da estrutura já conhecida e desgastada da maioria dos filmes de possessão é interessante.
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Jornalista, roteirista e escritor, apaixonado pela arte de contar histórias. Fã de narrativas de horror e suspense, perdido em mundos de fantasia e magia. Obcecado por musicais e dramas existenciais.