Confesso que iniciei a jornada pelos 8 episódios de Hazbin Hotel (2019 -) desanimado e sem expectativas. Sou um grande fã de animações, adoro musicais e acompanho os lançamentos da A24 bem de perto. A proposta da série (um hotel de reabilitação para almas condenadas, localizado no Inferno e comandado por Charlie, filha de Lilith e Lúcifer) me pareceu provocativa, mas muito arriscada. E digo arriscada pois acreditava que com muita facilidade a produção poderia cair em clichês ou forçar a barra para chocar. Porém, todas essas baixas expectativas foram frustradas, muito felizmente.
Embora, sim, Hazbin Hotel se valha de violência, palavrões, sexo e todas as depravações possíveis para compor sua narrativa, aqui tudo isso tem sentido. Estamos no Inferno, não é mesmo? O que mais poderia esperar? Porém, esses elementos não são o ponto principal da produção, estando ali mais como ambientação desse universo. O ponto central de Hazbin é, com certeza, a construção de personagens. Com uma primeira temporada de apenas oito episódios e um elenco BEM ROBUSTO de personagens, a série consegue apresentar e desenvolver bem cada um de nossos protagonistas. Embora nem todos deles tenham arcos completos (aqui o destaque fica para Vaggie, Charlie e Angel), todos que nos são apresentados tem personalidades complexas e agem de forma natural, sem parecer artifício de roteiro. Todos são absolutamente carismáticos ou totalmente detestáveis, servindo cada um ao seu propósito na trama de maneira fluída e orgânica. Além disso, a série revela uma agradável surpresa com um personagem específico (que não irei nomear para não dar spoiler), mas que traz um arco de redenção absolutamente inesperado e gratificante.
Além disso, todo o design de personagem e construção de mundo contribuem para uma experiência estética única. Conforme os episódios passam, mais e mais personagens com designs interessantes vão se revelando. Alguns, inclusive, guardam em seus visuais pistas importantes para o desenvolvimento da narrativa. Menção mais que merecida para o personagem Alastor, o demônio do rádio, um dos soberanos do inferno. Sua personalidade é carismática e apavorante, suas ações são sempre ambíguas e imprevisíveis e a cada episódio o personagem vai se construindo como um poderoso aliado e uma terrível ameaça. O personagem é cheio de mistérios, que perpassam suas motivações, seus verdadeiros objetivos e seu passado, visto que ele estava desaparecido por muito tempo antes de retornar, inesperadamente, e passar a ajudar nossa protagonista… ou pelo menos assim parece ser.
E já que falamos de Alastor, vale citar que toda a dinâmica dos soberanos do inferno é instigante e bem construída. No universo da série, logo no início do primeiro episódio nos é explicado que Lilith, a rainha do inferno, desapareceu, e Lúcifer, então soberano supremo, simplesmente se retirou de cena e não mais governa. Nesse cenário, as almas mais influentes e poderosas encontraram oportunidade para, através de jogos de poder e muito politicagem suja, tomar o controle do reino infernal. É interessante notar que, entre os principais soberanos apresentados, temos o demônio do rádio, o demônio da televisão, uma traficante de armas e um produtor de filmes pornográficos.
Outro ponto forte da animação é a sensibilidade para tratar os tópicos que aborda. Questões pessoais como relacionamentos, insegurança, culpa e busca por redenção são algumas nuances muito bem trabalhadas. Há quem diga que um tema específico, vivido pelo personagem Angel Dust, não foi trabalhado com essa mesma delicadeza e sensibilidade. O personagem em questão trabalha como ator pornô e tem a trajetória marcada por abusos de toda natureza: psicológicos, físicos e sexuais. Concordo que um episódio específico pode sim trazer gatilhos a pessoas que tenham vivido situações semelhantes e acredito que deva ser do julgo de cada um se e como deve consumir essa parte da história. Na minha experiência pessoal, senti um certo desconforto com essas passagens, mas não acredito que tenham sido representadas de forma irresponsável ou maliciosa, de forma que não estragou minha experiência (bem diferente do que aconteceu quando assisti ao longa-metragem They/Them).
E vamos falar do elemento principal da nossa narrativa: essa é uma história sobre genocídio e revolução. A cada ano, o Paraíso envia uma tropa de anjos exorcistas liderada por Adão, o primeiro humano, para realizar um Extermínio na população do Inferno. Essa ação tem objetivo de controlar e enfraquecer a população, para que uma rebelião seja impossível. Incapaz de revidar, os Pecadores vivem sob a constante ameaça, indefesos. Mas até quando? No primeiro episódio, Adão desafia Charlie e diz que, a partir daquele momento, os massacres passarão a acontecer semestralmente, ao invés de uma vez ao ano. Com isso, começa uma corrida da nossa protagonista contra o tempo: em menos de 6 meses, ela precisa reabilitar pelo menos uma alma em seu hotel para mostrar que é possível que os pecadores se redimam e entrem no reino do céu.
Por fim, os números musicais são magistrais. Cada música é única, cheia de personalidade e avança a trama ou nos apresenta a novos aspectos de algum personagem. Tudo isso, claro, com uma sonoridade deliciosa e que pega de surpresa. Numa série que ousa em tantos aspectos, o campo sonoro não foi exceção. Dou destaque para as faixas “Poison”, “Loser, Baby”, “Out For Love” que ficam na cabeça por dias. No geral, a diversidade musical é bem abrangente, trazendo algumas músicas mais ao estilo Broadway ou musical da Disney, faixas de rock, jazz e até mesmo inspirações em ritmos latinos. Inclusive, há toda uma cena de batalha em que os movimentos são coreografados como uma dança – e é simplesmente incrível. O ritmo e gênero de cada número musical casam perfeitamente com as personalidades dos personagens envolvidos e trazem uma ótima ambientação para as cenas.
Acredito que Hazbin Hotel seja uma experiência que todos deveriam dar uma chance e julgar por si mesmos. Para mim, foi uma viagem incrível, e espero ansiosamente que seja renovada para uma segunda temporada.
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Jornalista, roteirista e escritor, apaixonado pela arte de contar histórias. Fã de narrativas de horror e suspense, perdido em mundos de fantasia e magia. Obcecado por musicais e dramas existenciais.