A Casa Coruja: For the Future – Crescer e lidar com os sentimentos

Não pertencer, ao menos não acreditar pertencer, é um sentimento que assola muitas pessoas especialmente durante a infância e a adolescência. Crescendo gostando de fantasia, de super-heróis, pude conhecer muito esse sentimento, até finalmente então conhecer outras pessoas com os mesmos gostos. No segundo especial da terceira e última temporada de A Casa Coruja (The Owl House, 2020 – 2023) isso é algo muito importante, não apenas conhecer esse sentimento, mas a descoberta de haverem, sim, locais onde esse sentimento não existirá. Talvez esse especial pese menos entre os três, pois o grande mal não é tão ameaçador como Belos no anterior ou como o Coletor, em teoria a grande ameaça sob as Ilhas Escaldantes. Acompanhamos Luz e seus amigos, com sua mãe Camila, chegando ao reino dos demônios e encontrando um mundo aterrorizantemente colorido modificado pelo Coletor. É interessante a animação usando das cores vivas e infantilizadas para pintar esse mundo agora, mostra muito sobre quem é o Coletor de fato: apenas uma criança. O especial deixa isso bem claro através das cenas com o mesmo, sua história e origem são um pouco tocadas aqui, mas nem tudo fica explicado ainda. 

De volta ao mundo das bruxas, temos o retorno de dois dos principais personagens do seriado apenas mencionados e desenhados no especial anterior – Eda e King. King é o melhor amigo do Coletor, com quem o mesmo brinca de ‘Casa Coruja’, basicamente revivendo as aventuras de King, Eda e Luz ao longo da série. Transformando as pessoas em ‘bonecos’ e às fazendo brincar seu jogo, é um conceito bem macabro no geral e o medo dos personagens do Coletor deixa isso muito evidente. No final das contas, mesmo sendo uma criança, não diminui como o Coletor está brincando com as vidas de várias pessoas, roubando suas vontades, seu controle, tudo. King é o personagem mais próximo dele, isso o permite tentar ao máximo manter o Coletor sob controle e realizar uma redução de danos e tentando zelar pela família dele. Graças a confiança do Coletor em King, ele conseguiu manter Eda e Lilith salvas. A família está tentando sobreviver e planejar como derrotar o Coletor, sem conhecimento algum de Luz ou os outros terem voltado ao reino dos demônios. Infelizmente Luz e seu grupo não foram os únicos a chegarem lá, pois Belos também está de volta com seus próprios planos. 

Mas o Coletor e Belos não são a ameaça presenciada pelos personagens nesse especial, eles lidam com algo bem maior. Seus traumas, reagindo a tudo pelo que passaram desde o final da segunda temporada até ali. É interessante, pois por muitas pessoas o especial é o mais fraco, mas achei genial ter um episódio onde os personagens precisam lidar com seus sentimentos. Não se fala o suficiente nesse gênero de ação, aventura e fantasia como as experiências deixam marcas nem sempre físicas nas pessoas. Quando se aborda conceitos dentro da fantasia, é comum deixar de lado as marcas, mas a forma como Amelia Lorenz e Bridget Underwood dirigiram o episódio consegue trabalhar de forma orgânica e extremamente importante.

Willow Park, cuja voz original é feita por Tati Gabrielle de O Mundo Sombrio de Sabrina (Chilling Adventures of Sabrina, 2018 – 2020), foi a primeira amiga de Luz nas Ilhas Escaldantes e ao longo da primeira amizade a amizade das duas com Gus Porter era bem relevante. Devido ao encurtamento da série, Willow se afastou mais do enredo de Luz, mas ganhou até um episódio próprio sobre seguir o legado dos seus pais. Ela é como uma mãe para o grupo, e aí é onde mora o enredo dela no especial ‘For the Future’, pois a mesma não se permite sentir, sofrer ou falhar. Ao longo do especial, a personagem se pressiona a não demonstrar a fraqueza por necessitar estar lá por seus amigos. É em uma bela cena entre Willow, Gus e Hunter, quando os outros dois certificam estar tudo bem: chorar, sofrer e sentir saudades dos pais dela. O mundo está acabando e isso é só uma jovem lidando com tudo isso. Usar a plataforma da série para mostrar uma narrativa onde é deixado claro sobre como sentimentos de tristeza não são fraqueza é algo a se admirar, ainda mais usando todo o contexto fantástico da série. 

Se Dana Terrance tinha planos para várias temporadas de A Casa Coruja, esses planos foram cortados injustamente pela Disney, mas a criadora da série consegue trabalhar muitos aspectos dos seus planos aqui. Embora não entendamos quem são os outros Coletores, podemos ter várias pistas de como eles agiam nesse especial e também de como isso impactou o personagem cuja voz original é feita por Fryda Wolff. Infelizmente são apenas pistas para um enredo maior, pistas estas presentes na primeira e segunda temporada da série assim como nesse especial. Todo o enredo sobre Titãs e Coletores foi bem reduzido para caber dentro de um plot geral sobre o seriado abordado nos três episódios especiais da terceira temporada. Assim como relações não demasiadamente exploradas como Raine e Eda, mas não diminuindo a relação dos dois refletida em um dos primeiros planos do episódio quando Raine vê Eda pela primeira vez como a Fera Coruja ou Eda se mantendo próxima da versão fantoche de Raine. 

O enredo principal do episódio se dá na Nova Hexside, onde nossos personagens principais estudavam e onde os sobreviventes do ataque do Coletor se mantiveram firmes e fortes (na verdade nem tão firmes e muito menos tão fortes). Através desse núcleo podemos ter um desenvolvimento de Matt Tholomule (cujo nome e sobrenome serem algo diferente é algo revelado de forma humorada no episódio) e é mostrado o fato do personagem não só ter um enorme ego mas também uma capacidade real de liderar. Outra personagem cujo enredo mostra algum desenvolvimento é a Regina George da escola, a popular e malvada Boscha (voz original por Eden Riegel) cujos sentimentos por Amity Blight – umas das personagens principais – são finalmente expostos e superados, de certa forma. Inclusive o enredo de Amity citado no especial, sobre não ser quem Boscha deseja que ela seja, é o cerne de todo o desenvolvimento da personagem desde a primeira temporada e sua relação com sua mãe tóxica, Odalia Blight. Inclusive o foco da segunda temporada e do primeiro especial no relacionamento de Amity e Luz não é o mesmo no especial, mesmo havendo ali a relação das duas personagens. A parte mais importante se dá sobre a relação e escolhas de Luz em relação a seu futuro e reflexos assim de seu passado. 

Isso nos traz de volta para o começo do nosso texto, o fio condutor de toda essa série termina sendo a protagonista Luz Noceda (voz original por Sarah-Nicole Robles). No começo do seriado temos essa menina humana cujo hiperfoco no mundo bruxo passa a dominar a narrativa até ela conhecer esses seres, fazer amizades e criar suas próprias relações ali. Antes de Luz ir para o Reino dos Demônios, sua mãe Camila (Elizabeth Grullon) a estava enviando para um acampamento onde ela e outras crianças aprenderiam a “pensar dentro da caixa” e a sensação da personagem era de não ser a filha exemplar desejada pela mãe. No primeiro especial podemos ver como Camila foi pressionada por toda uma sociedade e desejar que Luz se encaixasse mais e fosse “como outras crianças e jovens”, mais uma vez é uma sensação de algo já ouvido muito por mim mesme quando jovem. Mas Camila em si era uma nerd, ela tem uma conversa com sua filha sobre como foi difícil para ela crescer sendo como era e por isso ela queria proteger a sua filha. Então é aí que algo clica. O maior desejo de Luz não era ser uma bruxa, não era ser A escolhida, não era praticar magia. Seu maior desejo era ser compreendida, algo desejado por muites de nós por aí. Daí onde falo sobre essa obra ser algo único e mágico dentro de muitas obras atualmente, por usar de ficção e fantasia para criar algo bonito e com uma bela e inclusiva mensagem. 

Inclusive é emocionante a percepção dessa personagem, a qual acompanhei por temporadas buscando seu maior objetivo, de que a compreensão foi algo sempre almejado. É de um grande amadurecimento de Luz reconhecer ali seu desejo, pois colocando em total perspectiva era isso seu motivador ao longo de toda a série. Em nosso segundo episódio ela perguntou “quando vou conseguir meu cajado bruxo” e nesse segundo especial, a penúltima entrada antes do final da série ela consegue. E sem dar ainda mais spoilers do que os dados ao longo desse texto, o palismã de Luz é o animal mais perfeito para a primeira protagonista bissexual do que se tornou a minha obra favorita da Disney. Todos os especiais de A Casa Coruja entraram no catálogo do Disney+ no dia 22 de Novembro.


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