Pouco ou quase nada sabemos sobre o que Yolanda está passando. Mas não demora até que percebamos que a aparente liberdade que a mulher demonstra nos primeiros minutos de A Mulher Selvagem (La Mujer Salvaje, 2023), quando dança exaustivamente e sem nenhuma timidez, está prestes a ceder lugar a um impasse trágico. Em sua estreia na direção de um longa metragem, o cubano Alán González, nos faz acompanhar visceralmente a crua jornada de uma mulher que tenta fugir, mas não sabe exatamente para onde e como.
É como se fossemos jogados sem muitas explicações no dia mais penoso da vida desta mulher, e pedaços dispersos de informações sobre os acontecimentos que a pressionam a ir em busca de seu filho, e a relação com este e com seu passado, vão sendo-nos entregue sem muita coesão, como se o filme não tivesse obrigação de nos dar detalhes de nada, o que potencializa aquele famoso papel de vouyeur em que o cinema às vezes gosta de nos colocar. É uma posição desconfortável, se sentir intruso na intimidade de alguém, mas ao mesmo tempo é praticamente impossível virar o olhar e não prestar atenção. É como se fossemos forçados a perceber o quanto nós julgamos sem saber muito sobre o objeto do julgamento.
As escolhas estéticas de González inevitavelmente me lembraram o que fazem os irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne em seu cinema, especialmente em sua obra-prima Rosetta (1999): uma câmera que acompanha, sem nunca perder de vista e de muito perto, o rastro de uma personagem em aflição, mas em A Mulher Selvagem temáticas de uma realidade latino-americana dão uma identidade diferente ao que vemos no filme dos irmãos belgas. Yolanda traz uma carga emotiva e passional que, mesmo beirando o estereótipo, é inegavelmente identitário de um furor feminino latino americano. E é aqui que chegamos na força descomunal que a atriz Lola Amores entrega a esta personagem e que dá à Yolanda uma complexidade arrebatadora.
Amores nos apresenta uma interpretação tão visceral que é aceitável sem nenhuma dúvida atribuir-lhe a coautoria do filme. A forma como a atriz utiliza todo seu corpo em seus mínimos movimentos para nos dizer um pouco mais sobre aquela misteriosa mulher, seus segredos, seu passado, sua personalidade, seus desejos, é de tirar o folego. E quando Yolanda finalmente encontra sua mãe (uma atuação também memorável de Isora Morales) e seu filho, vemos essa mulher selvagem aos poucos se desmontar e demonstrar que, como qualquer ser humano em uma situação de desespero, guarda por dentro uma enorme fragilidade, e ainda que se mostre reativa com suas palavras é o contrário de raiva o que se mostra em seu olhar. Yolanda é uma mulher que precisa viver, e ela vai seguir vivendo, apesar de tudo.
Este texto faz parte da cobertura do 33º Cine Ceará, realizada pelo Só Mais Uma Coisa.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.