Máfia da Dor – Pouca graça e pouca empatia

Obs.: Esse texto pode conter leves spoilers

Em um dos mais recentes lançamentos da Netflix, Chris Evans, de Capitão América: O Primeiro Vingador (Captain America: The First Avenger, 2011), e Emily Blunt, de Um Lugar Silencioso (A Quiet Place, 2018), têm a difícil missão de carregar nas costas o drama baseado em fatos reais, Máfia da Dor (Pain Hustlers, 2023). Lançado no último dia 27 de outubro, o filma acompanha uma mãe solo, Liza (Blunt), que vê no vendedor executivo Pete (Evans) a oportunidade que precisava para conseguir pagar suas constas e custear o tratamento de saúde da filha.

Embora os personagens sejam fictícios – a protagonista de Emily é uma espécie de amálgama, que junta os relatos de várias mulheres reais em uma única pessoa, numa tentativa do diretor de fazer o público se identificar com a luta da vendedora –, a trama explora um problema real dos EUA na última década: o vício em opióides (medicamentos usados para tratar dores), e conta como uma empresa farmacêutica usou de corrupção, suborno e manipulação de pesquisas para conseguir vender de forma massiva seu medicamento, usado, incialmente, no tratamento de pacientes oncológicos.

Desesperada, Lize não mediu esforços para ser a funcionária exemplar que, com seus planos, tiraria a empresa da falência e conseguiria juntar uma pequena fortuna, mesmo sabendo dos prejuízos que poderia causar à outras pessoas. Ainda assim, em determinado momento, uma crise de consciência levaria a ex-stripper a denunciar a companhia e a enfrentar o descontentamento de seus superiores.

Máfia da Dor não consegue ser nem comédia, nem drama

Parece realmente uma pena que os esforços de David Yates, que dirigiu quase toda a segunda metade da saga Harry Potter e a trilogia de Animais Fantásticos, não tenha sido suficiente para agradar nem a crítica especializada, nem o público. O filme ostenta apenas 24% na métrica de críticos do site dos tomates, para 69% do gosto do público (o que me pareceu bastante complacente).

Não é pra menos. Nas duas horas de filme, fica difícil compreender o tom. Ares de comédia para falar de um tema absurdamente sério, como a morte das pessoas, e uma tentativa de drama que não engaja, já que a gente passa boa parte do tempo rindo (ou tentando) do jeito meio atrapalhado da protagonista e até mesmo das canastrices de seu parceiro, Pete. Isso sem falar nas excentricidades do CEO da farmacêutica, Dr Neel, interpretado por Andy Garcia.

Talvez eu já esteja morto por dentro, ou não consiga, de fato, entender o humor de Yates, mas não fui capaz de esboçar nenhuma (ou quase nenhuma, para não parecer tão injusto) risada enquanto assistia. E quando a trama começa a ganhar o peso que gostaria de ter, já não me alcançou mais. Até porque, a seriedade não se mantém. Em uma das cenas mais aguardados do filme, a prisão de Neel, ele é apanhado pela polícia em um momento desnecessariamente constrangedor, tomando banho pelado em sua piscina particular. Zero timming!

Uma dupla que dá o nome

Apesar das intempéries, não é tarefa árdua conseguir acompanhar Máfia da Dor até o final. Muito disso se dá pelo carisma dos personagens. Trabalho excelente de Emily e Chris. A atriz já é conhecida por escolher com cautela seus papéis e já nos entregou vários presentes, como Kitty, em Oppenheimer (2023), e Evelyn, no já citado Um Lugar Silencioso. Não que já não tenha cometido algumas falhas (eu ouvi Jungle Cruise?). Mas aqui ela consegue, mais uma vez, imprimir seu encanto e nos fazer sentir empatia pela sua causa, fazendo-a parecer justa, mesmo que prejudique outras vidas para seu próprio benefício.

Em conjunto, Chris Evans traz um personagem showman, com ares de cafajeste, ambicioso e um tanto sem escrúpulos, mas, ainda assim, cativante. E isso, certamente, é o principal motivo que pode segurar a audiência até o final da história. Se David Yates não conseguiu, com seu roteiro ou seu método de direção, acertar um tom que nos fizesse sentir preocupação e/ ou empatia pelas pessoas afetadas pelos desmantelos da ganância da indústria dos opioides, ao menos ele acertou na escolha dos intérpretes.

É você, capitalismo?

É muito provável que você tenha se familiarizado com a história que Máfia da Dor nos conta. Isso porque esta não é a primeira mídia a tratar do assunto, mesmo que de forma dramatizada. Outros filmes e séries já falaram desse problema que assola a população estadunidense: o vício em opióides.

É possível ver casos muito perecidos em Dopesick, (2021), do Star+, que se baseou no livro “Dopesick: Traficantes, Médicos e a Companhia Farmacêutica que Viciou a América”, de Beth Macy; em Império da Dor (Painkiller, 2023), também da locadora vermelha; O Crime do Século (The Crime Of The Century, 2021), documentário da HBO que entrevista vários profissionais da saúde e vítimas do vício; e até mesmo em A Queda da Casa de Usher (The Fall of the House of Usher, 2023), que não traz o tema como assunto principal, mas pincela a problemática quando revela que a fortuna dos Usher se deu em torno da venda e opióides.

Máfia da Dor se baseia no livro Pain Hustlers: Crime and Punishment at an Opiod Startup (Traficantes da Dor: Crime e Punição em uma Startup de Opioides, em tradução livre), do jornalista Evan Hughes, que escreveu um longo artigo para o The New York Times, denunciando os métodos nada ortodoxos da farmacêutica Insys Therapeutics.

Para obtenção de lucros, assim como no filme, a empresa oferecia quantias exorbitantes de propina para que médicos receitassem a medicação para tratamento de dor fabricado por eles (eu ouvi cloroquina?). Originalmente pensado para a terapia de pessoas com câncer, a medicação começou a ser produzia em forma de spray, o que acabou dispensando a necessidade de receita e provocou o uso em massa, culminando em uma população viciada e, claro, na morte de vários pacientes. Tudo isso em nome do lucro. Deu certo por um tempo.

Depois da denúncia, John Kapoor, fundador da empresa, foi preso em 2017 e condenado, em 2020, a cinco anos e meio de prisão, dos quais cumpriu dois e deve deixar a prisão em dezembro deste ano.

O capitalismo na sua mais pura forma. Acho que não tenho mais nada a acrescentar.


VEJA TAMBÉM

A Queda da Casa de Usher – Mike Flanagan presta um grandioso tributo a Edgar Allan Poe e a si mesmo

Toda Luz Que Não Podemos Ver – Conhecimento é a luz em meio às trevas da ignorância