Scott Pilgrim: A Série – A lacração da Netflix ataca de novo

Scott Pilgrim Takes Off traz todos os personagens de volta. Imagem: Netflix/ Divulgação

Obs.: Esse texto contém severos spoilers de Scott Pilgrim takes Off

Mais de 10 anos após seu lançamento como live action e quase 20 anos do original nos quadrinhos, a obra de Bryan Lee O’Malley ganha uma nova versão. Scott Pilgrim: A Série (Scott Pilgrim Takes Off – 2023) estreou em 17 de novembro na locadora vermelha, trazendo episódios cheios de referências aos games de 16 bits (marca registrada da obra), muita ação e discussões importantes da sociedade moderna.

Caso não esteja familiarizado, as histórias em quadrinhos e o filme que os adapta (além de um video game), segue Scott – Michael Cera –, um jovem adulto desempregado que vive de favor na casa de seu amigo gay (e acho importante reforçar isso), Wallace Wells – Kiera Culkin (sim, o irmão de Macaulay Culkin) – e sonha sempre com uma garota misteriosa por quem ele se apaixona logo que a conhece na vida real.

Mas as coisas se complicam quando ele descobre que essa garota, Ramona Flowers – Mary Elizabeth Winstead – possui um passado que a persegue: 7 ex-namorados do mal que pretendem destruir qualquer homem que tente se aproximar dela. Esse é o mesmo enredo para as 4 mídias: HQ, filme, videogame e série animada. E foi o suficiente pra agradar ao público nas 3 primeiras versões.

Mas, o que, de novidade, poderia trazer um produto novo do personagem? Seria prudente apenas contar a mesma história, novamente, através de uma animação? Para O’Malley, isso seria “a própria morte!”

Scott Pilgrim conhece Ramona Flowers. Imagem: Netflix/ Divulgação

Mesma fórmula para desenhos diferentes?

No caso de você já conhecer os quadrinhos e já ter assistido a Scott Pilgrim Contra O Mundo (Scott Pilgrim vs. The World – 2010), do diretor Edgar Wright, o mesmo de Noite Passada em Soho (Last Night in Soho – 2021) – já falamos sobre esse filme aqui – é muito fácil se apaixonar pelo trailer de “Scott Pilgrim Takes Off”! Ele reforça a ideia de que a animação vai seguir o desenrolar da história original. Com um capítulo inteiro bastante fiel ao que já vimos, o verdadeiro plot twist vem no último minuto do primeiro episódio quando, ao invés de derrotar Matthew Patel (Satya Bhabha), Scott desaparece, deixando em seu lugar um punhado de moedas.

Para descobrir o que aconteceu, dessa vez, a gente acompanha Ramona. Aqui, a personagem abandona o papel de “namorada do Scott”, o que me parecia, à época, uma versão modernizada da “donzela em perigo”. E veja bem, eu amo a versão original da história. Mas, convenhamos, Ramona era uma personagem com um potencial incrível e, da mesma maneira, incrivelmente desperdiçado, já que passa a trama se explicando para o Scott e se vitimizando pelo seu passado e escolhas erradas em relação aos romances. Agiu de maneira ativa apenas quando teve que enfrentar um de deus affairs, Roxy Richter – Mae Whitman – só porque esta, afinal, era uma mulher.

Dessa forma, nossa protagonista passa a ser a própria Ramona. Ela vai perseguir seus ex-namorados, um a um, interrogá-los e, algumas vezes, sair no braço. O que se transforma numa jornada de autodescoberta, não apenas dela, mas de todos os personagens originais, antes, bem mal aproveitados, que serviam apenas de suporte para a jornada do “peregrino”.

Soa familiar? Você pode ler o que escrevi sobre Mestres do Universo: Salvando Eternia (Masters of the Universe: Revelation – 2021) nesse link aqui pra entender melhor onde quero chegar. Mas, posso te adiantar alguma coisa.

Tal qual na animação “do He-Man” que a Netflix lançou há 2 anos, temos um primeiro episódio bem focado no protagonista original, mas, que também acaba desaparecendo ao final, deixando a resolução da trama nas mãos de uma personagem feminina, passando o protagonismo adiante (em MOTU foi a Teela, junto da Maligna, quem carregou a série). E eu lembro o quanto isso desagradou a alguns fãs na ocasião. Mas, a exemplo do que também aconteceu em MOTU, “Scott Pilgrim Takes Off” nos entrega uma história super bem conduzida, com um olhar sensível e modernizado e que dá a oportunidade de conhecer de perto um leque enorme de possibilidades.

A lacração não tem limites em Scott Pilgrim Takes Off

Pouco ou muito, as mudanças feitas pela produção de “Scott Pilgrim Takes Off”, nas mãos de O’Malley e de Wright, não param na dupla de protagonista. No decorrer de seus 8 episódios, com duração média de 28 minutos, vários personagens, queridinhos, ou, nem tanto, têm uma evolução considerável em relação à versão original.

Knives Chau – Ellen Wong –, por exemplo, que antes demorou um filme inteiro pra encontrar seu próprio caminho, aqui desperta como uma garota extremamente talentosa para música e se transforma em um maravilhoso adendo para os “Sex Bob-Omb”, banda da qual Scott fazia parte como baixista. Sendo que ela consegue até um contrato e um show para o grupo.

Lucas Lee – Chris Evans – encara um delicioso arco de amadurecimento e deixa de ser o cara chato e egocêntrico que nos foi super mal apresentado originalmente. Mas, se tem uma mudança que me tocou de verdade, foi a que trouxeram para Todd Ingram, o ex-namorado com poderes telecinéticos, concedidos a ele por ser vegano. Interpretado por Brandon Routh, ator assumidamente gay, Todd redescobre sua sexualidade e sai do armário como uma pessoa LGBTQUIAP+, se envolvendo sexualmente com Wallace. O casal protagoniza cenas com beijos quentes e encontros às escondidas no trailer de Todd, onde eles iriam “ensaiar as falas” do filme que estão participando. Isso sem falar de Kim Pine, interpretada por Alison Pill, que tem uma cena de pura experimentação lésbica com outra ex de Ramona, a Roxie.

Trocando em miúdos: a série é a fórmula perfeita para os que alardeiam pânico moral toda vez que um personagem LGBTQIAP+ aparece em algum desenho animado, sob o pretexto de que crianças podem assistir. A surpresa? Tudo nos é entregue de uma maneira tão bem articulada, que todas essas mudanças engrandecem os personagens singularmente, enriquecendo, como consequência, a serie como um todo.

Dessa vez, Scott não é o protagonista de sua própria história. Imagem: Netflix/ Divulgação

Trabalho bem-feito, resultado positivo

Ao contrário do que os espectadores mais conservadores podem esperar, “Scott Pilgrim Takes Off” deu uma rasteira na máxima que diz que “quem lacra, não lucra”. No dia de sua estreia, a animação ostentou 100% de aprovação pela crítica no site dos tomates, para 76% de aprovação da audiência. Enquanto escrevo este artigo, a pontuação está em 98% e 78%.

Talvez isso entristeça não apenas os que se dizem conservadores nos costumes e que adoram reclamar quando se mudam protagonismos masculinos para femininos, ou a sexualidade de personagens, mas, também, os fãs mais xiitas, que odeiam mudanças de roteiro e maneiras diferentes de contar histórias que eles já conhecem de cor e salteado. E, sim, mesmo com toda qualidade da série, foi possível acompanhar nas redes sociais alguns xingamentos. Pessoas dizendo que a série era uma “bomba” porque a história era diferente do que foi escrito na HQ.

Scott Pilgrim Takes Off traz mudanças, mas não esquece o romance entre Scott e Ramona. Imagem: Netflix/ DivulgaçãoAqui, é preciso reforçar o que disse o autor em entrevista à Variety, depois de receber a proposta de transformar sua obra em animação: “Gostei da ideia de trabalhar com a Science Saru [empresa de animações], mas não tinha história nem motivação. Eu não queria fazer uma recontagem direta, porque isso parece a morte para mim.” E foi com isso em mente que o próprio O’Malley passou suas ideias para Wright: “Bem, e se começar como a mesma história, mas então Scott perder a luta com Matthew Patel e aparentemente morrer? E então, e se houver um filme de Scott Pilgrim na série estrelado por Lucas Lee como Scott?”

Bom, ainda bem que Bryan comprou a ideia!


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