Hamish Steele pode não ser um nome conhecido por você ao começar a ler esse texto, mas é um alguém que você certamente deveria saber mais sobre. Responsável por ter criado a graphic novel DeadEndia, cujo enredo acompanha Barney, Norma e o cachorro conhecido como Pugsley e suas aventuras trabalhando num parque de diversões que é um portal direto para o Inferno. Com uma história não apenas repleta de referências sobre o terror, demônios e histórias assustadoras, a graphic novel aborda uma perspectiva sobrenatural com protagonismo trans e não branco através de seus personagens. O quadrinho ganhou um curta animado para Cartoon Hangover Shorts no ano de 2014, antes mesmo das graphic novels, com um aspecto mais puxado para o humor, mas seus conceitos, assim como os personagens principais, o cachorro falante e até mesmo a antagonista Pauline já se faziam presente. Em 2022 foi encomendada pela Netflix um seriado animado, Guardiões da Mansão do Terror (Dead End: Paranormal Park, 2022).
Com sua primeira temporada de dez episódios, a série acompanha enquanto os dois jovem-adultos, Barney e Norma, trabalham em um parque de diversões assombrado pelas mais variadas presenças medonhas. Ao lado dos dois estão sempre o cachorro de estimação de Barney chamado Pugsley, possuído por um poderoso demônio – Temeluchus, e uma demônia banida para longe do Inferno, Courtney. Esse quarteto, mesmo em meio a várias reviravoltas e um enredo totalmente interessante e cheio de facetas a serem explorados, é o ponto alto da série.
A possibilidade de trabalhar para sair da casa de parentes preconceituosos é algo capaz de ressoar em muitas pessoas LGBTQIA+ ao redor do globo, também é essa a história de Barney Guttman, jovem trans e gay de 18 anos. Seu dublador, Zach Barack, é conhecido por ter sido a primeira pessoa trans em um filme da Marvel, infelizmente sem qualquer destaque para sua presença, no filme Homem Aranha: Longe de Casa (Spider-Man: Far from Home, 2019). A trajetória de Barney é inicialmente sobre sua família, sobre remendar junto a seus pais uma relação quebrada pelo preconceito dos mesmos. Ao longo da primeira temporada Barney consegue fazer as pazes com seus pais, os fazendo enxergar atitudes que o afastaram e machucavam.
Não se fala muito da ausência de protagonismo LGBTQIA+ em enredos sobre fantasia, ficção e horror, especialmente quando se trata de animações. Barney é um dos protagonistas da nossa história, um homem trans, gordo e gay, com relações complicadas com sua família, com um interesse amoroso, com inseguranças, com manias e desejos. O humor do personagem é uma das melhores coisas, especialmente em meio a tanto caos sobrenatural presente nessa fantasia sombria. Mais especial ainda é a presença deste personagem e todas as suas nuances num seriado animado com classificação indicativa a partir de dez anos. É sobre pensar não como eu, uma pessoa adulta, fui atingida por essa série, mas como jovens crianças LGBTQIA+ poderão crescer sabendo que não existe nada de errado com elas serem como são.
Do outro lado do enredo temos Norma Khan (dublada por Kody Kavitha), uma jovem paquistanesa americana de 17 anos e autista. Aqui trazemos outros aspectos não muito presentes no centro de histórias, sob o olhar de uma pessoa autista – Hamish Steele – a presença de Norma contribui de forma positiva e peculiar para todo o desenrolar da trama ao longo da primeira temporada. Afinal, ao longo da temporada podemos ver como Norma tem dificuldade em criar laços pessoais e situações de interação social. Essa trajetória engrandece muito as relações criadas ao longo da série pela personagem e em como ela passa a se relacionar com o mundo exterior, em especial todo o lado paranormal do mesmo. Um dos arcos da personagem ao longo da série é sobre entender e lidar com sua sexualidade após ela se entender como bissexual, mas a série ressalta como a experiência de pessoas asiáticas não hétero se divergem das histórias comumente contadas sobre se assumir. Como dito previamente, o seriado aborda olhares peculiares e originais para obras do mesmo gênero feitas anteriormente.
Parando um pouco de falar sobre perspectiva, é necessário mencionar sobre como o seriado trabalha bem com sua pegada de terror subvertendo muito o gênero com um humor muito bem roteirizado. Além de oferecer descobertas surpreendentes para os seus mistérios ao longo de suas duas temporadas. Não é fácil subverter tão bem a expectativa de um público, mas quando falo sobre A Mansão do Terror me fazer ficar de boca aberta com diversas revelações e escolhas, posso garantir sobre eu não estar brincando. O trabalho dos roteiristas e diretores é digno de aplausos, misturando a vida cotidiana de jovens adultos com origens diversas, os problemas do mundo moderno, o sobrenatural e muito mais. Mesmo com cada história de episódio tendo um enredo próprio, é possível enxergar como sutilmente as histórias gerais das temporadas são construídas como um belo quebra-cabeça. Existe muito material de origem para se beber do horror, mas nem todo criador seria capaz de adaptar este horror para um público mais jovem de forma tão sensível e divertida.
Dentre os demais personagens desta série temos uma atriz famosa responsável por inúmeros sequestros e possessões, uma mão angelical extremamente “mão-nipuladora” (nossa que piada ruim, mas não quis perder essa chance) chamada Dedos e uma vampira demônio que é dublada por ninguém mais ninguém menos que a ganhadora do Globo de Ouro, Michaela Jaé Rodriguez, também conhecida como a Blanca Evangelista de Pose (2018 – 2021). Uma das melhores facetas do seriado é como garante ao seu elenco de vozes originais a presença de talentos trans e também talentos não brancos. Cada personagem pode até a primeiro olhar parecer simples, mas é daí onde o trunfo do seriado se esconde, na complexidade disfarçada de simplicidade garantindo a seus personagens uma maior profundidade. Claro, isso é mais sentido ao longo da segunda temporada do seriado, responsável por mergulhar cada vez mais fundo não apenas na lore deste universo, mas também nos personagens não protagonistas.
Onde está o horror atualmente? O que assusta? Isso remete muito a um dos primeiros episódios do seriado, onde há um demônio cuja alimentação é o medo das pessoas e podemos mergulhar em como a vivência de Barney com sua família o assusta. Uma pessoa trans cuja família não é capaz de lhe defender das ofensas de uma parente, isso é assustador para o rapaz, assim como é assustador para grande parte das pessoas trans – jovens e velhas. Assim como Norma lida com sua ansiedade social, medo de interações com outras pessoas, do olhar de outros. São pequenas nuances como estas exploradas ao longo do seriado responsáveis pelo mesmo ter uma qualidade peculiarmente madura mesmo se tratando de uma animação (também) destinada ao público infantil. De uma forma natural a primeira temporada da animação esculpe a criação de seu mundo, através de enredos mais focados em seus personagens lidando com diferentes assombrações e demônios, se expandindo na segunda temporada para como o universo sobrenatural melhor funciona.
Mas não importa o quanto eu rasgue elogios para o seriado, sejam por seus quesitos técnicos ou por sua importância para a atual e futuras gerações, pois no dia 13 de Janeiro a Netflix anunciou o cancelamento da sua série. Mesmo com seus traços peculiares e narrativas tão únicas e divertidas, isso não foi o suficiente para garantir uma terceira temporada ou sequer lhe dar um final digno. A contagem de séries com protagonismo não branco, não cis e hétero sendo canceladas pelo streaming continua a subir, ao longo do último ano desagradando muitos dos assinantes. Infelizmente o maravilhoso trabalho de Hamish Steele não vai poder se concluir como previamente planejado, mas embora tenha tido uma vida curta o seriado com certeza deixou a sua marca para a história. Afinal, uma série animada sobrenatural com tantas abordagens relevantes para a juventude contemporânea há de ficar no coração de muitos. Mesmo assim ainda é de causar muita tristeza pensar o quanto grandes empresas parecem dedicadas a negar o pertencimento de corpos não dissidentes ao protagonismo, em especial àqueles de histórias fantásticas
Se existisse justiça haveriam mais animações como Guardiões da Mansão do Terror sendo feitas, diferentes emissoras e streamings desejando as distribuir, mas estas obras seguem sendo canceladas. Sendo privadas sequer de um final justo, deixando um eterno senso de ‘e se’ nos corações do público. Existe sim melancolia para estas falas pois talvez se tivéssemos crescido tendo mais referências trans nas mídias, autistas, não brancas, vivêssemos em um lugar menos repleto de preconceito. É apenas de se esperar mais obras sendo feitas, desejando a estas obras um destino mais justo e merecido do que o dado à Guardiões da Mansão do Terror. Essa série em 20 episódios consegue criar um laço e um apego digno entre seus personagens e também cativar seu público enquanto diverte, faz rir e faz até sofrer um pouco. As duas temporadas da série permanecem disponíveis na Netflix Brasil.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.