Versos à Bessa – Transformação, reconhecimento e o incômodo da poesia popular

No último mês de 2021 a Globoplay lançou a série documental Poesia que Transforma (dirigida por Duda Martins e Chico Walcacer)  contando a história, a poesia e os lugares de Bráulio Bessa, aquele que com versos simples e temas complexos, trajetória dura e passos leves, escrita certeira e fala mansa tem se estabelecido como um nome fundamental da literatura popular contemporânea. 

Seus livros, vídeos e palestras são consumidos por milhares de pessoas.  Pelo seu talento consigo compreender imediatamente o sucesso, mas sempre tenho dificuldade de digerir os incômodos que ele causa. Não estou falando aqui de quem não gosta de seus poemas, algo obviamente natural de existir para um autor de best sellers. A questão está na essência dos argumentos daqueles que não o reconhecem como poeta.

Muita gente tem em seus livros os primeiros exemplares da vida. Pessoas de todas as idades admiram e são tocadas por sua arte. Mas como não poderia deixar de ser, sobretudo nesses tempos turvos, o desdém se apresenta em muitas das opiniões críticas ao seu trabalho. O que poderia ser questão de gosto, acaba, por tantas vezes, se valendo de elementos históricos da unidade exploração-opressão que forjou os preconceitos desse país, para mascarar os olhares reducionistas diante do que se julga popularesco. Frente à simbiose do preconceito regional, do elitismo e do ódio de classe surge a questão: pode ser considerado poeta um jovem do interior do Ceará que trabalha na televisão e vende livros para todo tipo de gente? 

Ora, a poesia popular sempre causou alvoroço. E arrebatar pessoas num país desacostumado com a valorização artística é um fato grandioso. Mas antes de ser exaltada ela sempre foi alvo de questionamento. Atualmente alguns a querem nas prateleiras, mas num mausoléu  da culpa acadêmica, enterrando sua produção rica e diversa como obra do passado. A querem fetichizada, alvo de estudos das contradições próprias do que é tradicional, como modelo do que é velho, distante e exótico. Demonstrá-la viva soa brega ao pós-modernismo, pois embora ela não esteja valorizada num nicho específico e nem sempre grite por todos os cantos, como adora o fast food cultural do grande mercado, ela sussurra potente, persistente e democrática, conquistando corações e mentes. 

Nesses incômodos e falsas polêmicas, a velha discussão sobre culturas erudita, de massa e popular, tão fundamental quanto instrumentalizada, é retomada de forma rasteira, tentando disfarçar a ignorância de quem quer limitar tudo que é vinculado às tradições populares como meras reprodutoras de estereótipos e caricaturas. 

Bessa, por exemplo, realiza seus versos com estrutura exemplar à tradição do cordel, mas vincula seu conteúdo distante das amarras do heteropatriarcado e de outras formas de opressões, elementos inegavelmente tão naturalizados em produções mais antigas nesse segmento. Ao contrário disso, o autor recupera, revitaliza e enfatiza o caráter crítico e inventivo da tradição cordelista e se apresenta como um artista complexo, que se posiciona, sem medo do novo, sem romantizar o velho e sem encantamento com os modismos das novidades. Ainda assim, ora rebaixam esse tipo de produção numa vinculação necessariamente reacionária, ora sugerem que os novos sujeitos performam um papel folclórico artificial.

Persiste a dificuldade de aceitar que a literatura não precisa ser para poucos. Por isso, quanto mais Bráulio Bessa vende livro, mais se questiona sua legitimidade poética. O questionamento em números é proporcionalmente diminuto, mas revelador. Efervescente e esfarelado, ele retrata uma tentativa de perpetuar a cultura nordestina vinculada ao simplório.

A despeito disso tudo, um poeta se faz com reconhecimento e ele perpassa por dimensões quantitativas e qualitativas. Certamente os números expressivos de vendas e os holofotes midiáticos são indicativos importantes do sucesso de um escritor que, afinal, escreve, entre outras coisas, para ser publicado e lido. Por óbvio isso não é o fator determinante, pois o mercado editorial também sabe fabricar obras com obsolescência programada. Dimensões qualitativas são importantes, entre elas, a análise da crítica especializada, as premiações em concursos literários e a validação acadêmica. Porém, há ainda outra esfera qualitativa fundamental.

Bessa é poeta não por se denominar um. Nem somente por fazer textos com versos, estrofes e rimas.  Ser poeta é mais práxis que identidade. Arte é unidade, ação e reflexão, exercício e comunicação do sensível, síntese nada divisível de forma e conteúdo. Bessa é poeta por escrever poemas, por ser lido e, sobretudo, por ser assim reconhecido pelas pessoas que são afetadas por sua arte. 

Bessa toca as pessoas pela autenticidade de sua poesia. Achar ela boa ou ruim, rebuscada ou simplória, tudo isso é discutível, mas desconsiderar sua legitimidade diz muito da ignorância de quem questiona o que lhe é estranho sob o prisma obtuso do pedantismo. Quem acha que ele reproduz um sertão fictício, seja por uma perspectiva supostamente idílica ou exageradamente miserável,  não conhece a complexidade do real, a unidade de contrários que faz da realidade e da arte necessariamente entrelaçadas

 Um poeta é ser que produz, mas que também realiza e, assim, reverbera rimas, histórias e a pujança de uma cultura popular viva, orgulhosa, mas com autocrítica, sem medo de sua identidade, mas com coragem de ir além. Sobretudo, uma poesia sem vergonha de ser do povo. Um cordão de ritmos entrançado com o lirismo de tudo que é nosso, cheio de diversidade e avesso ao que nos limita. 

Debater poesia é fundamental. Criticar a produção descartável e meramente mercantil, idem. Interpretar, analisar, perceber as nuances, diferenças e níveis de complexidade entre distintos autores e produções é algo salutar. Gostar ou desgostar é  compreensível e saudável.  Mas não esqueçamos que não há incoerência ou disputa entre o simples e o sofisticado. Poesia não é competição, é reconhecimento. Deixemos as amarras para quem delas precisa. Quem gosta de disputa e de corrente é o conservadorismo. Já eu, sertanejo, afeito ao ritmo e à rebeldia, amante do maracatu, do samba e do rock, gosto de cordel. 

A arte que possibilita reflexão, que revela nossa substância e nossas contradições é uma arte incontornável. Enquanto leio e escrevo sobre estética em Gyorgy Lukács e pesco epígrafes em Brecht e Patativa do Assaré, reconheço nas palavras de Bessa a voz de minha avó agricultora, da minha mãe professora aposentada da educação infantil, dos meus amigos de infância do sertão, ouço as contraditórias águas do açude do Castanhão, além de muito daquilo que eu como professor universitário quero falar, ler e ouvir.

Que a poesia permaneça transformando. Afinal, o maior educador desse país nos lembrou que os livros não mudam o mundo, eles mudam as pessoas que podem mudar o mundo.  Que os versos que cultivam a esperança e a luta reverberem resistência para enterramos a xenofobia, a intolerância, as desigualdades e todo e qualquer elitismo disfarçado de bom gosto.


Wescley Pinheiro é professor do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Mato Grosso em Cuiabá-MT. Contato: [email protected]


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