Não é de hoje que a Netflix faz releituras de desenhos de décadas passadas, seja em formato de filmes ou de séries animadas. Foi assim com She-Ra e as Princesas do Poder (She-Ra and the Princesses of Power, 2018 – 2020), Death Note (2017), Carmen Sandiego (2019 -), Cavaleiros do Zodíaco (Seinto Seiya: Knights of the Zodiac, 2019 – 2020) e está acontecendo com Cowboy Bebop (2021 -). Nem sempre ela foi bem-sucedida, temos que admitir. Mas, desde que Stranger Things (2016 -) mostrou para a locadora vermelha onde estava a mina de ouro (no saudosismo de seu público), ela nunca mais parou de apostar em trazer de volta nomes que fizeram sucesso na infância de seus assinantes.
Mestres do Universo: Salvando Eternia (Masters of the Universe: Revelation, 2021 -), vem com essa mesma pegada e faz uma leitura moderna da animação dos anos 1980, nas mãos de Kevin Smith, que já dirigiu episódios de Supergirl (2015 – 2021), Flash (The Flash, 2014 -) e filmes como Seita Mortal (Red State, 2011) e Dogma (1999), aquele em que Alanis Morissette é Deus. Aqui, diferente dos exemplos citados, não temos um reboot (quando uma história é totalmente recontada do início). A produção resolveu dar continuidade ao desenho que foi exibido entre 1983 e 1985 e já no primeiro episódio temos um embate entre He-Man e seu arqui-inimigo Esqueleto, que tenta, mais uma vez, invadir o Castelo de Grayskull e tomar seu poder.
Entretanto, mesmo tentando tocar no coração de um público que hoje já é adulto trazendo de volta um mundo construído quase 40 anos atrás, seria possível fazer uma continuação nos mesmos moldes em que se pensavam as animações dos anos 1980? Ou, mais do que “possível”, seria “necessário”?
A nova animação de Adam e companhia sofreu severos ataques quando sua primeira parte foi lançada, no finalzinho de julho. A motivação? Uma parte mais, digamos, “conservadora” da audiência sentiu-se profundamente ofendida por não ter sido agraciada com uma animação no mesmíssimo modelo da que ela viu quando ainda era formada por infantes. Talvez essa parte dos espectadores estivesse esperando por movimentos com poucos quadros, repetições de cenas para economizar frames ou, na mais absurda das hipóteses, um herói que era idêntico ao seu alterego, estando apenas um pouco mais bronzeado. Poderia ser isso a causa do incômodo – e provavelmente foi disso que ele se disfarçou. Mas, não, não foi exatamente isso que deixou os haters irritados.
Salvando Eternia é, de fato, um produto de seu tempo. É uma série animada pensada para o público atual. Ela deixa de lado os paradigmas antigos, onde os personagens femininos eram relegados a suportes para os protagonistas homens. Onde se exaltava o ideal de masculinidade, musculoso, destemido e extremamente honrado. É claro que as animações dos anos 1980 estavam abarrotadas de problemas – eram elas, também, produtos de seu tempo. Desenhos de ação eram pensados para meninos e meninos não estavam acostumados a ver mulheres em posição de poder (e nem as meninas também).
Uma animação que fosse desenvolvida para este público deveria mostrar a força masculina. E homens e mulheres tinham papéis muito bem definidos nessa época. Cada um ocupava o lugar que lhe era apropriado, sendo este lugar, para as mulheres, sempre de subalternidade. Mesmo que em algum momento elas demonstrassem alguma força, o protagonismo era essencialmente masculino – era o homem quem salvava o dia ao final de cada episódio. O herói valoroso, irredutível, só poderia ser salvo pela mulher se ela usasse suas “habilidades” intrinsicamente femininas: sensibilidade, maternidade, ponderação… Mas, será que é sobre isso que as obras de massa falam hoje?
A animação de Kevin Smith não faz uma completa releitura do produto original. Nosso herói não foi esquecido. Ele não só existe como ainda é o protagonista de seu mundo, o campeão de Grayskull. He-Man está à frente de grandes cenas de luta, tem frases de efeito poderosas, ainda salva o dia. Porém, não faz isso sozinho. Ele foi escrito, dessa vez, não como o único agente de mudança, mas como um deles. Ele é, nessa série, exatamente o que nos foi ensinado a vida inteira que ele deveria ser: o “fio condutor” do poder de Grayskull, não o poder em si.
Já no primeiro episódio os escritores da animação tomam a corajosa decisão de matar He-Man. Um choque na audiência! Como pode He-Man morrer na sua própria série? Logo quando a gente esperava um revival, o principal ator de Eternia é assassinado e deixa a cargo de Teela (com a companhia inesperada de Maligna) resolver os problemas que se seguem, em um planeta que está morrendo pela falta da magia que o sustentava. E é aqui que tudo se torna mais interessante.
A despeito do que se pode pensar, Kevin Smith não abriu mão da violência e da porradaria só porque colocou as mulheres à frente dos problemas. O que ele fez foi trazer uma nova perspectiva para personagens que pareciam de pouca ou nenhuma importância, já que, se não atrapalhavam, também não ajudavam. E isso sim foi o que feriu o ego dos incels espalhados pelo globo. Não apenas “perder” seu ídolo masculino de vista, como também perceber que caberia a uma mulher os louros pela resolução das problemáticas colocadas.
Não há espanto: essa rejeição não é novidade. Aconteceu com a personagem Furiosa em Mad Max: Estrada da Fúria (Mad Max: Fury Road, 2015), com a Rey em Star Wars: O Despertar da Força (Star Wars: Episode VII – The Force Awakens, 2015) e até mesmo com a Capitã Marvel, atacada pelo ciúme dos fãs do MCU (Marvel Cinematic Universe) quando a mesma foi considerada como a personagem mais poderosa desse universo.
No último dia 23 de novembro a Netflix colocou no ar a segunda parte de Salvando Eternia e trouxe de volta à vida o musculoso He-Man (que, ainda assim, passa boa parte dos episódios na forma de Adam). Escolheu Maligna como vilã principal, reduzindo os propósitos do Esqueleto a uma ambição movida apenas pela inveja, distante da grandeza da bruxa, que resolve destruir toda a existência quando percebe a própria pequeneza diante do caos do universo.
Assim, enquanto He-Man troca socos com seu inimigo de pela azul, mais uma vez, fica para Teela a incumbência de garantir a continuidade da existência, tendo que escolher entre ser a nova Feiticeira ou ficar ao lado de sua família. Os episódios rendem cenas emocionantes de batalhas épicas, grandes retornos, efeitos especiais belíssimos, muita ação e um epílogo no último episódio com um gancho que me fez saltar da cadeira.
Nomes de peso deram vida aos personagens, garantindo ótimas atuações. Sarah Michelle Gellar, de Buffy: A Caça-Vampiros (Buffy The Vampire Slayer, 1997 – 2003), Lena Headey, de Guerra dos Tronos (Game Of Thrones, 211 – 2019) e Mark Hamill, da trilogia original de Guerra na Estrelas (Star Wars, 1977) interpretam Teela, Maligna e Esqueleto, respectivamente. Já He-Man teve a voz de Chris Wood, o Mon-El de Supergirl (2015 – 2021). Obviamente, a linha de brinquedos MOTUC (sigla para Master Of The Universe Classic) já lançou as versões em figuras de ação dos personagens.
Seria redundante recomendar a série. Os 10 episódios você provavelmente assistirá em uma única tacada. Vai aprender sobre família, amizade, humanidade, humildade e – de uma maneira um pouco mais discreta, mas não menos importante – poderá perceber um debate sobre relacionamentos abusivos (e a dificuldade para sair deles). Ou seja, não perdeu a “vibe anos 80”, onde havia uma pequena lição ao final de cada história. Perfeito para quem já tem mais de 40 anos, ou apenas 16 (a classificação não é livre, há bastante violência). Mas, só (e somente só) assista se você estiver disposto a reviver os velhos tempos sem deixar de lado a importante evolução social pela qual, felizmente, estamos passando. Porque, dessa vez, “NÓS temos a força!”
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Gay, Nerd, jornalista e podcaster. Chato o suficiente pra achar que pode se resumir em apenas quatro palavras. Fã de X-Men e especialista em Mulher-Maravilha. Oldschool – não usa máquina de escrever, mas bem que poderia. There’s only one queen, and that’s Madonna!