Não é nova a ideia de um filme onde toda a ação é levada por ligações telefônicas. Um dos primeiros no estilo que me lembro e que me deixou bem impressionado foi Por Um Fio (Phone Booth, 2002), de Joel Schumacher, estrelado por Colin Farrell. Um homem que é mantido refém após atender uma ligação em uma cabine telefônica aleatória em uma rua super movimentada de Nova York. Premissa ótima e minimalismo no ponto, do jeito que eu gosto. Mas posso pensar em outros na mesma linha como Controle Absoluto (Eagle Eye, 2008); o excelente Locke (2013) e mais recentemente um curta belga que concorreu ao Oscar na categoria de melhor curta ficção em 2020, chamado Uma Irmã (Une Soeur, 2018). Então, o que tem de tão diferente no longa dinamarquês Culpa (Den Skyldige, 2018), dirigido e roteirizado por Gustav Möller?
Na verdade o filme segue a mesma linha especialmente dos dois últimos que mencionei acima. Um policial é afastado das patrulhas e colocado para o serviço emergencial de atendimento por telefone, enquanto espera ser julgado por algo que cometeu em uma de suas rondas. Asger (Jakob Cedergren) atende, à contragosto, ligações de pequenas emergências até quase acabar seu turno, quando recebe então uma ligação que chama sua atenção bem mais que as anteriores. Uma mulher tenta disfarçar a conversa como se estivesse falando com a filha, para tentar comunicar ao policial que, na verdade, está sendo mantida refém em um carro em movimento. Asger sente então a necessidade de ajudar a moça de alguma forma, contando com o auxílio de outros atendentes do serviço de emergência, e tendo apenas a localização aproximada do veículo.
Tudo isso, e todo o decorrer do filme, se passa nas duas salas onde o policial faz as ligações. E são o telefone e algumas poucas informações que consegue pelo computador do serviço as únicas armas que possui para tentar resolver o caso e salvar a vida daquela mulher que supostamente corre perigo de morte. Mas quem disse que Asger precisa resolver aquele caso sozinho? Talvez essa pergunta ajude não a responder, mas a pensar na primeira pergunta que fiz no fim do primeiro parágrafo aqui em cima. A função de Asger era repassar o caso para seus superiores, para um departamento de investigação, algo do tipo. Qualquer coisa, menos dar uma de Sherlock Holmes dos telefones e tentar resolver aquela questão tendo apenas as poucas informações que possuía naquele momento. Obvio que o dilema fica óbvio, e é exatamente isto que deixa o filme mais interessante. Se Asger repassasse o caso será que os outros o resolveriam ou ao menos tentariam resolver como ele estava disposto a fazer? Repassar o caso para frente não seria lavar as mãos? O policial conseguiria dormir tranquilamente sem saber o destino daquela mulher? Ele se depara então com uma difícil escolha.
E aqui vou desviar um pouco o texto do filme, mas permaneceremos ainda no mesmo assunto. Recentemente vi a minissérie documental da Netflix Cena do Crime – Mistério e Morte no Hotel Cecil (Crime Scene: The Vanishing at the Cecil Hotel, 2021), que fala de um famoso caso real de uma turista canadense que após ser filmada pelas poucas câmeras do elevador do Hotel em questão simplesmente desaparece deixando quase nenhum rastro. O vídeo do elevador viralizou, após ser divulgado pela própria polícia na esperança de obterem alguma pista do desaparecimento de Elisa Lam. Logo um cenário de uma lenda urbana começa a permear o caso, que rapidamente vira alvo dos autodenominados “detetives de internet”. E é aqui que eu queria chegar. O que passa na cabeça das pessoas que acham que podem resolver crimes ou mistérios sentados na frente de seus notebooks e formados em algumas temporadas de CSI?
Ok. Você pode dizer “ah, mas alguns casos já foram resolvidos por essa galera”, como vimos em outra minissérie documental da Netflix Don’t F**k with Cats: Uma Caçada Online (Don’t F**k with Cats: Hunting an Internet Killer, 2019). Tá, mas não é função dessas pessoas fazerem isso. Elas não tem formação pra isso, e mesmo que tenham algum tipo de formação, elas não estão alinhadas com as instituições que realmente deveriam investigar os casos. E aí nos deparamos com aquele velho dilema novamente: sabemos que as autoridades competentes nem sempre são tão competentes assim, e que muitas vezes a negligência destas faz com que casos nunca sejam resolvidos e criminosos saiam impunes para sempre. Então, o que fazer? Deixar pra lá? Por outro lado, a tentativa de resolver esses crimes pode causar problemas para pessoas inocentes, ainda mais em uma época de tribunal da internet. Mas aí já estou fugindo demais do assunto.
O fato é que ao tentar ajudar, por melhores que fossem as intenções de Asger e mesmo que ele seja policial e teoricamente tenha algum preparo para lidar com crimes, Asger é um ser humano, e como tal, cheio de falhas e experiências que impactam em suas escolhas. E é por isso que, por mais minimalista e simples que Culpa seja, acaba se tonando um filme tão interessante. E claro que o formato escolhido para a apresentação do dilema de Asger nos ajuda a colocarmo-nos em seu lugar, a sentirmos sua angústia, seu sentimento de incapacidade, algo que me lembrou também o ótimo Buscando… (Searching, 2018). O que fazer quando sentimos o ímpeto de ajudar alguém? Será se ao tentar ajudar estaremos realmente ajudando? O filme não dá nenhuma resposta para esses dilemas, apenas o joga para que pensemos sobre eles.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.