Bem, começarei esse texto com uma ressalva: não costumo assistir especiais de stand up. Já assisti, sim, a vários diferentes, de vários comediantes. E rio, sim. Porém, sempre houve o incômodo dentro de mim, enquanto mulher que não só já fez comédia (enquanto atriz) como também enquanto ávida espectadora do gênero. Veja bem: é difícil fazer comédia. É difícil na escrita de uma série, filme ou qualquer peça midiática. E é difícil, principalmente, quando se tem um público. Então, não por acaso, os comediantes se agarram em piadas simplistas, fáceis, daquelas que todo mundo vai rir. Elas, em sua maioria, são as já conhecidas: piadas de loira, entre religiões, piadas étnicas (mas só se o comediante for negro ou parte de alguma dita “minoria” étnica, se não é racismo – o que nunca impediu alguns patetas de se utilizarem disso), etc. O assunto é sempre o mesmo, mudando apenas o discurso, a forma como são contadas, a entonação e o manejo do artista ali com o microfone. Cansei.
E daí… Apareceu Nanette. Não conhecia Hannah Gadsby antes disso e, honestamente, não sei bem o que me levou a dar uma chance a essa então desconhecida comediante. Veio-me o pensamento do millenial mediano do século XXI: será mesmo que irei perder pouco mais de 1h da minha vida assistindo a mais um especial de comédia que eu nem sei se irei gostar? Por sorte – da vida, da Netflix ou do Universo -, isso aconteceu num dia cuja paciência de me adentrar no catálogo infinito do canal de streaming estava abaixo de zero. Nanette literalmente apareceu para mim: abri a conta e lá estava, em toda sua grandeza, ocupando mais da metade da minha tela. Não pensei. Havia estreado naquele mesmo dia e eu só… fui. E como fui.
Hannah Gadsby é uma comediante exemplar. Ela estudou a comédia e sabe a estrutura de uma piada, o que faz alguém rir, qual o motivo gerador da tensão ou como gerar a mesma. Ela sabe o que fala e isso, aqui, é importantíssimo. Não é para menos: são 15 anos de comédia. Admito que, talvez, para aqueles que não têm o inglês fluente, uma coisa ou duas possa até se perder porque o tom de voz usado é essencial pro resultado que se espera: o riso. E ela trabalha na sutileza do riso. No silêncio proposital, em uma própria interrupção para voltar a outro assunto… Mas veja só, eu não ri, apenas. Também chorei. E chorei horrores. Isso porque Gadsby é uma comediante das minorias, ela é o que essa geração precisa na comédia stand-up. Hannah Gadsby é inteligente, competente, sabe colocar a tensão corretamente em cada fala e o próprio roteiro de seu stand up tem uma força muito importante em si e a maior motivação, talvez, do espectador estar tão apto a chorar. Explico.
Começamos conhecendo essa mulher de um aspecto visual pouco feminino – ou, pelo menos, o tipo de feminilidade que se espera de uma mulher. E, já no começo, ela mostra saber disso: lésbica, de aparência “masculinizada” (aqui, entre aspas, porquanto pensamos no aspecto binário de gênero: homens usam calças e mulheres, saias ou vestidos). De qualquer forma, ela ressalta todos esses aspectos de sua aparência, que a fazem ter noção do seu lugar enquanto minoria numa sociedade estruturalmente machista, patriarcal e binária. Dessa forma, faz piadas sobre si mesma, mostrando uma certa leveza e controle de seu discurso. Há quem ria descontroladamente, há quem ria com uma parcela de culpa. Eu estava ali, numa terceira bolha: ok, estou rindo, mas… onde essa mulher quer chegar? Estava sem saber ao certo se era mais uma dessas comédias autodepreciativas que toda pessoa minimamente diferente – para os padrões acima citados – já passou e viveu. Digo, sabe aquele amigo gordo da turma? Comumente conhecido como o piadista, no maior dos estereótipos possíveis. Bem, vou te dizer uma coisa: o riso é um escape. É a forma de lidar com todo o preconceito e intolerância que venha. É mais ou menos assim: “Quer rir de mim? Tarde demais, já estou fazendo isso!” E então, a estranheza, o embaraço vai embora. E tudo fica leve. “Leve”.
As ditas minorias trazem consigo anos e anos de pensamentos autodepreciativos, acham que merecem o pouco que têm porque, de alguma forma, é culpa delas serem “diferentes”. Novamente as aspas. Não deveria ser considerado diferente o LGBTQ+, ou mesmo ser uma mulher que performa masculinidade e vice-versa. Todos somos diferentes, inclusive de modo biológico! Ou você já encontrou uma digital igual a sua?
Quando amolece a plateia com o riso, Gadsby começa a mostrar a que veio, de fato. A fórmula da piada é destrinchado ao vivo e uma aula de arte é dada. Ela nos faz pensar e, mais ainda, questionar. Algo como “por que, para fazer os outros rirem, eu preciso me botar para baixo?” E então, ela se revolta e joga verdades como quem distribui notas de dinheiro para um público aberto a recebê-las. Ou seja: ela abre o coração, com a comédia, para então ter uma audiência sem amarras. Aposto que uma ou outra pessoa ali jamais se libertará das correntes do tradicionalismo – palavra essa lotada de inflexibilidades -, mas a mensagem geral fica bem clara: “não há nada mais forte que uma mulher destruída que se reconstruiu”, nas palavras da mesma.
Me interessa o discurso de Hannah Gadsby porque ele também é meu, de certa forma. Enquanto mulher, sou atingida diariamente por questões de uma sociedade que se impõe para que eu haja de um jeito x ou sinta de uma forma y. Me interessa e me atinge o discurso de Hannah porque, por anos a fio pensei que, enquanto artista, estava fadada ou a sofrer ridicularmente enquanto vida e ser exaltada em minha morte. Afinal, todo artista é meio doido, né? E já escutei palavras como “vanguarda” ou frases como “você não é desse tempo”. Tudo isso, a um primeiro olhar, nos faz pensar que é um elogio, certo? Errado. Viver a frente de um tempo, como ela mesma diz, é literalmente impossível. Estudar a arte e me ver em artistas como Frida Kahlo ou Van Gogh me trazia enorme dor. Eu, Tay, não quero estar “à frente de meu tempo”. Quero apenas… Me expressar. E se, para isso, preciso largar a arte como é conhecida e contada, então que seja. E é isso que Hannah questiona em sua apresentação. Abandonar a comédia porque ela não mais a representa, porque ela está – e estamos – cansada de acreditar que merece ser humilhada simplesmente por… Bem, por ser ela. Eu também cansei.
Se eu recomendo o especial? Não. Eu exijo que você, leitor(a) desse texto, assista agora. Ou depois. Mas assista. Não há um público-alvo, não é só para LGBTQ+’s, ou homens brancos, héteros e cisgêneros, ou mulheres brancas, héteras e cisgêneras. Você é uma pessoa? Então veja. Ou talvez, faça como eu: veja com sua cachorrinha ao lado e converse com ela sobre cada nova reação ou a aperte num abraço quando o choro apertar em seu coração.
Por fim, a mensagem é clara. Entretanto, nem todos a irão receber com facilidade, afinal, a verdade dói, né? Ainda bem, porém, que ela é libertadora. Portanto, faça-se esse favor. Não foi pouco mais de 1h perdida – até porque, honestamente, perdi as contas de quantas vezes já vi -, foi uma experiência. Todas as vezes, uma experiência.
Bacharel em Cinema e Audiovisual, fotógrafa e sagitariana por definição. Tay é viciada em dar close e em viajar. Escreve, desenha, edita e se deixar, atua também. Odeia aranhas, ama margaridas e abraços apertados.