Existem alguns filmes da Netflix que me deixam um pouco triste por serem da Netflix. Porque isso significa que provavelmente eu nunca vou ver aqueles filmes no cinema. Um deles é Klaus (2019), meu xodozinho injustiçado do Oscar, e A Caminho da Lua (Over the Moon, 2020) se tornou mais um filme desse time.
A animação, que estreou no final de outubro na locadora vermelha, foi uma coprodução Pearl Studio, Netflix Animation e Sony Pictures Imageworks. Caso você não conheça esse primeiro nome é porque eles são um estúdio relativamente novo, antes eles eram conhecidos como Oriental Dreamworks e tinham animado partes de algumas animações da própria Dreamworks. A Caminho da Lua é o segundo filme deles como Pearl Studio, o primeiro foi Abominável (Abominable, 2019) que, por sinal, compartilha de muitas semelhanças com o novo.
Até mesmo porque contam com pessoas que já trabalharam em Abominável na produção como Peilin Chou, que produziu, além deste, Kung Fu Panda 3 (2016), então é possível perceber uma ligação dela com animações que representem a China, além de ser bom ver esse estúdio chinês produzindo histórias que se passam na China, com protagonistas chineses e trazendo muito de sua cultura ganhando visibilidade.
O filme conta a história de Fei Fei, uma adolescente muito inteligente que perdeu a mãe por conta de uma doença anos atrás e que tinha uma ligação muito forte com ela. Por conta da mãe ela é fascinada pela Lua, pela lenda da deusa Chang’e que vive lá, o que também a tornou tão interessada por ciência e astronomia.
Porém, tudo muda quando seu pai fica noivo de outra mulher. Ele seguiu em frente, mas a garota fica chateada pensando que seu pai esqueceu sua mãe e não a ama mais, então como a história de Chang’e fala de amor verdadeiro, ela decide ir para a Lua provar a existência da deusa e assim mostrar para o pai que o amor não acaba e sua mãe o espera. Bom, ela encontra Chang’e, mas ela não é bem o que Fei Fei esperava e quer algo em troca da garota. Seu companheiro de viagem acaba sendo Chin, filho de sua madrasta.
O filme lembra muito o antecessor do estúdio por falar sobre luto, mas A Caminho da Lua vai um pouco além, lidando com um pós luto, o seguir em frente após a morte de uma pessoa importante. Fei Fei vai precisar entender que realmente o amor não acaba, seu pai ainda ama sua mãe, mas ele ainda tem amor para dar e receber assim como ela própria.
Em todos os termos técnicos da animação, modelagem, textura e até mesmo em tudo que envolve as músicas, incluindo a tradução brasileira, a qualidade do filme não fica atrás de nenhum da Disney ou da Dreamworks. A direção de arte é belíssima e o design é muito criativo. Quando o cão cósmico aparece logo nos primeiros segundos e vemos aquele chow-chow feito de nebulosas, o filme já mostra a que veio. Mas quando chegamos em Lunária é que o espetáculo visual começa, com muitas cores vibrantes e fortes, cheia de formas e seres diversos feitos de poeira estelar multicolorida. Impossível deixar de mencionar os figurinos de Chang’e, desenhados por Guo Pei, desingner que já participou de outros filmes e ganhou destaque com o vestido amarelo que fez para Rihanna no Met Gala. As roupas da deusa, assim como o cabelo de Fei Fei contam uma história.
Adorei que a obra também usa técnicas e estilos de animação diferentes em momentos específicos, lembrando o que acontece em O Pequeno Príncipe (The Little Prince, 2015) e Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man: Into the Spider-Verse, 2018). Quanto às músicas, quando vi que o filme era um musical, primeiro imaginei que elas ficariam em inglês, então quando vi que elas também foram traduzidas fiquei encantada. Além de bom para acessibilidade, o público infantil é mais atingido também. Caso alguém se interesse, a Netflix disponibilizou nas plataformas digitais as duas trilhas sonoras, original e em português. Na voz original houve uma preocupação com a representatividade, com atrizes e atores orientais participando, mas na dublagem brasileira a Netflix não teve essa preocupação, talvez porque seria difícil selecionar esse elenco, até onde sei não existem tantos dubladores de ascendência asiática, então talvez seria preciso depois de escolher o elenco ensiná-lo a dublar e a empresa não quisesse se dar ao trabalho, mas a dublagem foi feita por profissionais muito competentes. E eu no caso, assisti o filme dublado, mas já tinha assistido vários trechos legendados.
Adorei todas as músicas, mas o único ponto negativo – que não vejo o porque de ter acontecido – é que a Netflix fez algo que outros grandes estúdios estão deixando de fazer, que é colocar uma voz para os diálogos e uma para cantar. A Disney, por exemplo, tem investido em uma voz só, procurando dubladores que já cantem, ou como fizeram com Lara Suleiman em Aladdin (2019), chamando uma atriz de musical, que já atua e canta, e ela apenas fez o curso de dublagem. Em A Caminho da Lua temos duas vozes para muitas personagens, o que não parece fazer muito sentido se Michel Singer, que dubla o Chin fala e canta, enquanto Michelle Giudice que dublou Fei Fei e canta, não cantou, assim como Sylvia Salustti e sua Chang’e que teve as canções interpretadas por Cidália Castro (que também foi a diretora musical do filme). O trabalho de todas é maravilhoso, mas Sylvia e Cidália tem vozes muito diferentes, e sendo fangirl de Sylvia, tendo inclusive a ouvido cantar ao vivo, não consigo CONCEBER não terem deixado essa mulher cantar, logo ela que é a Rapunzel de Enrolados (Tangled, 2010) e a Pérola de Steven Universo (Steven Universe, 2013 – 2020).
Deixando essa minha revolta de lado e voltando ao filme.
Muitos temas além do luto são abordados na história, como a tradição, ainda mais com os bolinhos da lua, já que a família de Fei Fei tem uma barraquinha/loja desses bolinhos, chegando até mesmo a falar sobre renovar a tradição, a mudança como algo bom. A cena da família preparando e depois comendo o jantar toda junta é muito bonita, trazendo além de família bastante sobre comida e união. Comida essa, inclusive, que não deixa a desejar para as cenas de comida do Studio Ghibli, chega a dar água na boca. Os membros da família são bem representados, as tias fofocando sobre a história da deusa serve para trazer interpretações sobre a lenda, se Chang’e deixou o amado de propósito ou se não teve escolha.
Toda a metáfora da deusa, de Fei Fei primeiro a enxergar como uma representação do que aconteceu com sua mãe e para o amor verdadeiro, mas na verdade ela representando mais a protagonista é muito eficiente e bonito de ver acontecer. E temos Lunária, esse lugar encantador, mas pouco explorado e pouco desenvolvido. Nossa protagonista na verdade mal fica lá, e Chin, que parece ser quem vai desbravar o lugar, na verdade fica preso. Fica uma vontade de querer saber mais da cidade, sua história, sua mitologia, como ela funciona e etc. Só o que sabemos é que Chang’e é uma espécie de Princesa Jujuba de Hora de Aventura (Adventure Time, 2010 – 2018), que criou seu povo e sua cidade do zero. Para mim, mais 20 minutos de filme e Chin sendo, na verdade, colocado para fora do palácio e indo explorar Lunária seria incrível. Mas a cena do ping-pong em gravidade zero quase compensa isso, pela diversão.
A única coisa que me incomoda mais no filme são as personagens secundárias pouco exploradas. São todas muito cativantes e queremos ver mais delas. No fim, aprendemos que sim, o amor dura para sempre, mas existem outros tipos de amor, não necessariamente um substitui o outro, ou é maior do que o outro.
A Caminho da Lua é um filme lindo, tocante, que vale a pena assistir seja sozinhe ou em família, e tem cheirinho de Oscar. Inclusive acho justo levar por conta da injustiça com Klaus.
A seguir alguns spoilers sobre o final.
Ao final, temos aquela dúvida de se tudo aquilo realmente aconteceu ou não, eu sou sempre do time que prefere acreditar. Além do que, seguindo ainda a metáfora, no final a ideia de Pulinho ficar na Lua, dá a entender que ela acabou falecendo de algum modo e ela era o último elo direto de Fei Fei com a mãe, além de ela terminar com um casal e agora Fei Fei respeitar seu pai estar com sua madrasta.
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Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.