Após levar um filme produzido pela Netflix para o Festival de Veneza, um dos mais tradicional festivais de cinema do mundo, com indicações a melhor filme e melhor roteiro, vencendo nesta última categoria, os irmãos Joel e Ethan Coen estreiam no canal de streaming seu 18º longa metragem em uma das parcerias mais duradouras e impecáveis do cinema americano com A Balada de Buster Scruggs (The Ballad of Buster Scruggs, 2018).
O filme se trata de uma antologia construída por seis histórias ambientadas no Velho Oeste Americano, mais precisamente no imaginário mítico que compõe este período da História do país, reforçado durante anos e anos primeiramente pela literatura de western, com as Dime Novels, que tinham este nome por terem um custo muito baixo, e depois compilados em livros de contos que traziam as aventuras e desventuras de cowboys, donzelas em perigo, foras-da-lei e intrépidos xerifes. Esta mitologia se mostrou um prato cheio, no início do século XIX, para compor as narrativas de uma arte recém criada e fortemente difundida desde então, o Cinema. Em pouco tempo o western (ou faroeste como é mais conhecido por aqui, termo que deriva de Far West, ou Oeste distante) se constituiria como um dos gêneros mais abordados pela sétima arte, de tal forma que o grande crítico e teórico do cinema André Bazin o classificou como “o cinema americano por excelência”.
Os Coen já demonstraram grande interesse pelo estudo dos gêneros cinematográficos mais típicos do cinema norte americano em sua filmografia. Seu primeiro longa, o ótimo Gosto de Sangue (Blood Simple, 1984), já flertava com o noir, enquanto Ajuste Final (Miller’s Crossing, 1990) é claramente um filme de gangster. E é claro que o western já teve sua vez, primeiro em uma versão moderna do gênero com o incrível Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007), baseado no livro de Cormac McCarthy, e depois em uma nova adaptação do livro de Charles Portis, Bravura Indômita (True Grit, 2010), trazendo uma abordagem mais clássica do gênero. E fica bastante claro como os dois cineastas conseguem imprimir em todas estas versões, assim como em todos os seus filmes, uma identidade inconfundível, um traço de humor ácido e uma versatilidade, além de um revisionismo, em especial nos filmes aqui citados, que os coloca como dois dos mais proeminentes cineastas americanos de todos os tempos.
Neste novo filme Joen e Ethan Coen voltam a abordar o western, mas desta vez o fazem como uma forma de homenagear o gênero em suas mais variadas características e, ainda assim, colocando sua marca singular em cada uma das seis histórias contadas. O filme se estrutura na forma de um livro, The Ballad of Buster Scruggs and Other Tales of the American Frontier (A Balada de Buster Scruggs e Outros Contos do Faroeste Americano), onde cada capítulo traz, além de uma ilustração colorida, um conto diferente sem nenhuma interligação com os outros.
O primeiro destes contos é o que dá nome ao filme. Buster Scruggs (Tim Blake Nelson) é um charmoso fora-da-lei que cavalga montado em seu cavalo Dan, cantando alto e tocando sua viola. E aqui já percebemos que um dos destaques do filme será a bela fotografia do francês Bruno Delbonnel, que já havia trabalhado com os Coen em Inside Llewyn Davis: Balada de um Homem Comum (Inside Llewyn Davis, 2013), que se beneficia das deslumbrantes paisagens características do western para ambientar cada uma das histórias, e é onde mais sentimos a falta de uma tela grande de cinema. O conto de Scruggs é o mais divertido dos seis, com uma pegada meio Lucky Luke, e suas músicas e coreografias, mas também uma violência contrastante com o irrefreável bom humor do protagonista. Além disso é o único em que temos uma narração, no caso do próprio Buster Scruggs, que inclusive quebra a quarta parede falando diretamente com o espectador.
No segundo conto, Near Algodones, o mais breve dos seis, temos mais um fora-da-lei, um ladrão de bancos vivido por James Franco que ao tentar a sorte em um pequeno banco no meio do nada acaba entrando em uma série de revezes que o levam ao seu destino final.
Em Meal Ticket, o personagem de Liam Neeson viaja de cidade em cidade levando seu espetáculo artístico composto apenas de um jovem poeta que não possui nenhum dos quatro membros (em uma interpretação surpreendente de Harry Melling, conhecido como Duda Dusley, o primo chato do Harry Potter). Este é o conto que mais carrega no pessimismo típico da filmografia dos Coen, e talvez o que mais entregue uma profundidade reflexiva em sua narrativa simples.
All Gold Canyon talvez seja o mais fabulesco de todos, e também o mais silencioso. Inspirado em um conto escrito por Jack London, fala sobre um velho mineiro (uma interpretação digna de prêmios de Tom Waits) que, ao passar à margem de um riacho, decide buscar por minérios preciosos.
Depois temos The Gal Who Got Rattled, o mais longo e com uma construção mais complexa dos seis. A talentosa Zoe Kazan interpreta a jovem e tímida Alice Longabaugh, que viaja em uma caravana com seu irmão mais velho Gilbert (Jefferson Mays), que mantém a esperança de casá-la com um conhecido no Leste. A história tem como base um conto do novelista americano Stewart Edward White.
E por último The Mortal Remains nos coloca em uma das famosas diligências, imortalizadas por John Ford e John Weyne no clássico de 1939, que transportavam viajantes pelas cidades do Oeste Selvagem. Aqui temos um conto totalmente baseado no diálogo entre os cinco peculiares passageiros da carruagem, a dupla de elegantes mercenários vivida por Jonjo O’Neill e Brendan Gleeson, o apostador e bon vivant francês de Saul Rubinek, a velha senhora interpretada por Tyne Daly, que após anos volta para reencontrar seu marido médico, e o montanhês caçador rabugento de Chelcie Ross. É interessante observar como as conversas entre os passageiros percorrem vários temas e nos fazem conhecer um pouco de cada um deles, e é encantador perceber as mudanças de humores de cada um ao ouvirem as histórias dos demais. E enquanto notamos a chegada do crepúsculo após o pôr-do-sol, sentimos que o clima vai ficando cada vez mais carregado entre todos ali dentro, culminando em um final que deixa para o espectador a interpretação.
Assim, temos nas seis histórias que compõem o filme, tanto visualmente falando quanto nos temas abordados, uma perfeita e extremamente bem delineada homenagem dos Coen ao western, de forma que conseguimos identificar todos os grandes elementos que o definem em cada um dos contos. Nas paisagens e cenários, como já havia mencionado, Delbonnel já inicia nos presenteando com uma das mais icônicas visões do gênero, as formações rochosas do Monument Valley, localizado entre os estados de Utah e Arizona, e únicos em todo o mundo. Ainda no primeiro segmento temos a típica cidadezinha do Velho Oeste, cortada por apenas uma via ladeada por delegacia, hotel, comércios e o famoso saloon, onde parte da narrativa se desenrola. Nos contos que se seguem temos ainda o banco decadente, as extensas planícies e as montanhas geladas, entre outros.
Quanto às temáticas os roteiros dos irmãos Coen não deixaram escapar praticamente nenhuma das que caracterizam o gênero durante toda sua longa história. Temos o cowboy quase invencível, o duelo, o fora-da-lei na forca, o artista itinerante, o prospector ganancioso em sua busca incansável por ouro, as grandes caravanas que cortavam o país, sempre passando pelos riscos de serem atacados por nativos e animais selvagens e a já mencionada diligência, só faltaram mesmo o assalto ao trem e a Guerra Civil. Mas o mais interessante é que a marca dos diretores está presente em todas as histórias, especialmente figurando na forma de uma quebra de expectativa surpreendente em cada um, e a forte presença de elementos estranhos, sejam mais fantasiosos, como os animais All Gold Canyon ou obscuro final de The Mortal Remains, sejam mais realistas como a cena do bordel em Meal Ticket ou a conversa no jantar no início de The Gal Who Got Rattled.
Os irmãos Coen, então, conseguem o difícil feito de, ao mesmo tempo em que prestam homenagem a um gênero cinematográfico que é tão caro à sua carreira, bem como ao cinema americano como um todo, são capazes de imprimir seu estilo único a cada um dos contos, demonstrando enorme destreza em ressignificar um gênero que pode parecer engessado a olhos menos atentos, mas vem se mostrando a cada ano de uma atualidade marcante, tanto na sua fórma, como nos temas abordados.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.