Desde que Solid Snake se infiltrou pela primeira vez em uma base militar com o objetivo de destruir um robô/tanque de guerra gigante, Metal Gear – juntamente com seu criador, Hideo Kojima – passou a ser um componente não apenas relevante, mas icônico na cultura gamer. Ao longo de oito jogos principais e mais uma dezena de spin-offs, Kojima transformou a série Metal Gear em referência para storytelling e mecânica de stealth, transformando e aprimorando seu próprio trabalho até alcançar o conceito de stealth game como nós conhecemos hoje.
Por causa do inegável sucesso da série, e do renome que Kojima adquiriu na indústria ao longo de quase trinta anos de carreira, foi uma grande surpresa quando a Konami resolveu, em 2015, que era hora de cortar laços com o criador de uma das franquias mais bem sucedidas da história do videogame. Além da grande polêmica que surgiu em volta da mudança de políticas da empresa e do rumo que ela tomaria dali pra frente, essa ação da Konami deixou gamers do mundo todo apreensivos não apenas com o futuro de Metal Gear como série, mas também com o resultado final do ainda não lançado Metal Gear Solid V: The Phantom Pain (2015).
No fim das contas, Kojima continuou na Konami apenas por tempo suficiente para realizar sua visão de um capítulo final na história de Metal Gear. Depois de sua partida, a produtora ainda fez uma tentativa de lançar títulos novos para a franquia, mas o desastre absoluto de vendas e críticas de Metal Gear Survive (2018) deixou bem claro que Metal Gear sem Kojima simplesmente não é a mesma coisa, e depois de cinco anos de seu lançamento, Phantom Pain acabou se tornando um monumento ao fim de uma era.
Diferente das tradicionais aberturas de filme de ação com as quais os fãs estão acostumados, Phantom Pain começa de um jeito quase apocalíptico: continuando de onde o prólogo jogável Ground Zeroes parou, nós nos deparamos com um (suposto) Big Boss acordando de um coma em um hospital que é imediatamente atacado, e tendo que evitar, ainda desarmado, forças militares, uma assassina misteriosa, uma versão jovem de Psycho Mantis e um perseguidor incansável literalmente em chamas.
Inicialmente, o jogo é confuso e um pouco estranho, e não é por acaso. Sendo cuidadosamente tecida ao longo de vários jogos, a história de Metal Gear é naturalmente complexa, convoluta e longa, e Phantom Pain é a peça que faltava para completar esse quebra cabeça narrativo que esteve em construção por três décadas. Entretanto, isso não quer dizer que o jogo se encaixa naturalmente nos espaços vazios do universo, mas sim que, eventualmente, seus eventos servem de ponte entre acontecimentos de outros jogos, conectando-os de forma definitiva.
Na prática, isso quer dizer que conectar os pontos aqui requer um pouco de esforço por parte do jogador. Enquanto Kojima tipicamente faz uso de cutscenes longas, dramáticas e intensamente expositivas para contar suas histórias, esse foi o título que ele escolheu para demonstrar seu recém-descoberto autocontrole e exceto por alguns nomes familiares mencionados logo de cara, o jogo é inicialmente difícil de situar. Até o resgate de Miller, que marca o final da introdução do jogo, quase duas horas depois de ter começado, é difícil se sentir realmente jogando Metal Gear.
Assim, o plot, moldado para caber dentro de uma narrativa preexistente e diluído ao longo de 50 missões principais, acaba ficando disforme, fraco e com jeitinho de filler. Além disso, como a maioria dos personagens já foi canonicamente explorado – alguns à exaustão – em outros jogos, não sobra muito espaço para desenvolvimento adicional: Ocelot e Miller aparecem como pouco mais que administradores glorificados, Huey Emmerich é mais uma inconveniência irritante do que qualquer outra coisa, Skull Face e Code Talker ficaram extremamente caricatos, o carisma de Snake acabou sendo meramente teórico, e Quiet foi reduzida ao tipo de papel de apoio que reforça a tradição de representação deturpada e supersexualizada de mulheres em videogames.
Surpreendentemente, os personagens que foram melhor aproveitados foram o próprio Psycho Mantis, ainda jovem e sem sua personalidade psicótica, e Eli – futuramente conhecido como Liquid Snake. O jogo não apenas explorou as personalidades dos dois individualmente, mostrando a empatia excessiva e sombria de um e as tendências à insubordinação e rebelião do outro, mas também desenvolveu a natureza de seu relacionamento com base nessas características, e fundamentou ações dos personagens em pontos futuros da cronologia.
Os métodos narrativos não são a única característica que destoa do restante da série: sendo o primeiro Metal Gear de mundo aberto, o jogo conta com um mapa verdadeiramente gigantesco para explorar. Por mais que tenha sido considerada uma de suas melhores inovações, a mudança vem com seus sacrifícios e desafios. A imensidão do mapa, por exemplo, significa mais áreas de exploração e maior liberdade de movimento, e a chance de realizar muito mais missões, mas também implica longos espaços de deserto inabitado entre um ponto de interesse e o próximo, e o desgaste da motivação quando as missões se tornam inevitavelmente repetitivas. Além disso, a jogabilidade, anteriormente focada em infiltração, precisou ser adaptada para acomodar esse novo formato, aprimorando mecânicas introduzidas em Ground Zeroes e introduzindo alguns elementos de tiro tático para manter a ação relativamente balanceada.
A introdução da Mother Base como um lugar aberto para exploração é outro adendo que alterou um pouco o modo como o jogo progride. Num formato reaproveitado de Metal Gear Solid: Peace Walker (2010) e que remete vagamente a jogos com SimCity, a base faz parte de uma sessão do jogo que parece bastante um simulador de gerenciamento e construção, focando em desenvolver tecnologia, regular finanças e direcionar recursos militares para manter a base em desenvolvimento constante, adicionando e melhorando plataformas voltadas para pesquisa, combate, intel, etc, resultando num preparo mais eficiente para as missões e na expansão e aprimoramento dos equipamentos utilizados em campo. O espaço também é customizável, cheio de easter eggs e diamantes escondidos, e também desempenha seu próprio papel na história.
O processo de expandir a base é trabalhoso e fortemente movimentado pelo recrutamento de novos soldados, uma mecânica também reciclada de Peace Walker que é pouco prática e visualmente ridícula – é impossível conter o riso quando um soldado é suspenso do chão por um mini balão amarrado ao seu torso, e decola ao berros e em alta velocidade rumo à estratosfera num momento digno da Equipe Rocket, ou é engolido por um buraco de minhoca, aparecendo depois na Mother Base como se nada tivesse acontecido – mas que, feita com cuidado e atenção, eventualmente proporciona um ritmo de jogo muito mais fluido e divertido.
Apesar de excelentes, essas mudanças fazem de Phantom Pain um péssimo stand alone e um jogo introdutório pior ainda. Um jogador que descubra Metal Gear através dele vai se deparar com uma história complicada de acompanhar e se surpreender com a incompatibilidade técnica com os jogos anteriores.
Pode soar como um problema novo, mas a verdade é que isso nada mais é do que a versão evoluída de uma das características mais marcantes de Metal Gear: por causa da extensão de tempo ao longo da qual o universo foi construído e do público que cativou ao longo da jornada, a série acabou desenvolvendo um teor metalinguístico, no sentido de que cada nova parte da narrativa acaba sendo um diálogo aprofundado sobre um ou mais elementos das narrativas anteriores, e o estilo de jogo apela muito mais para fãs de longa data do que para jogadores recém chegados.
Para compensar pelas estranhezas, Phantom Pain se sobressai no quesito combate. No melhor estilo Kojima, confrontos no jogo são ao mesmo tempo fascinantes e extremamente frustrantes: a maioria dos inimigos podem ser abordados de uma centena de jeitos diferentes, fazendo uso das ferramentas tanto de stealth quanto de tiro tático, do terreno, clima ou hora do dia, uma liberdade rara dentro da série, ao mesmo tempo que inimigos que exigem táticas de combate específicas – como Quiet, Man on Fire e os Skulls – forçam algumas estratégias recicladas e meio batidas no jogador, mas mesmo o lado frustrante dos combates ainda contribui para um ritmo empolgante de batalha e para o efeito dramático do jogo.
Metal Gear não se tornou uma série icônica por acaso. Apaixonado por cinema, Kojima sempre quis transformar videogame em obra de arte, e sua jornada de trinta anos com a Konami foi focada em alcançar esse objetivo. O resultado é que seus jogos deixaram marcas profundas no coração e na memória dos fãs, combinando storytelling ousado e jogabilidade impecável para proporcionar ao jogador uma experiência única.
Os olhos de novata de Meryl, a luta extremamente confusa contra Psycho Mantis, a morte de Sniper Wolf, a trágica história de The Sorrow, o combate contra The End, o confronto com The Boss no campo de flores, o primeiro encontro com Revólver Ocelot e a batalha final contra Liquid Ocelot, o choque de ver Metal Gear REX pela primeira vez e a surpresa de vê-lo pela última, o reencontro entre Snake e Big Boss. Todos esses momentos foram cuidadosamente planejados para causar impacto emocional intenso e construir um dos arcos narrativos mais finamente elaborados da história do videogame, e eles cumpriram seu papel com maestria: Metal Gear é uma daquelas aventuras que, mesmo não sendo para todos os gostos, acaba moldando você como gamer.
Foi dito, depois de seu lançamento, que Metal Gear Solid V: The Phantom Pain tinha sido o ápice da série, mas pra mim, o jogo tem o sabor pesaroso de um epílogo: enquanto Metal Gear Solid 4:Guns of the Patriots (2008) mostrou o final da jornada de Snake e Big Boss, uma jornada que teve início décadas antes, que custou várias vidas, várias lágrimas, o sacrifício de famílias, velhos amigos e ideais, Phantom Pain leva a história de volta pro começo, para o processo que transformou uma figura originalmente heróica no vilão do primeiro Metal Gear, para os eventos e decisões que selaram tantos destinos e causaram tanta destruição.
O ciclo está, enfim, completo.
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Unicórnia, escritora, wannabe de roteirista e fangirl profissional, se alimenta de livros, filmes, games, animes, seriados, fanfics e cupcakes. É ocasionalmente vista chorando enquanto assiste animes de esporte, assombrando livrarias e eventos geek pela cidade, contando histórias de terror em salas escuras ou falando com gatos na rua. Os gatos normalmente respondem.