365 Dias – O perigo da romantização do abuso como entretenimento

Spoilers a frente, então se não assistiu ao filme, não precisa, poupe seu tempo e leia o texto

A essa altura do campeonato, não chega a ser surpresa se mais uma produção no catálogo da Netflix causa polêmica. A já cancelada Insatiable (2018-2019) tornou-se alvo das críticas negativas logo após o lançamento do trailer da primeira temporada, com a acusação de conteúdo gordofóbico, e, mesmo com uma petição de cancelamento que passava de duzentos mil assinaturas — não que fosse fazer diferença —, a atração durou por mais um ano. Outra que deu continuidade apesar da péssima recepção, é Baby (2018-) acusada de promover o tráfico sexual na trama sobre adolescentes que estão dispostos a tudo em prol de uma vida luxuosa. Talvez essa peneirada para o que o canal de streaming lança esteja ligada a pioneira das controvérsias: 13 Reasons Why (2017-2020). O que começou com avaliações fervorosas dos veículos críticos, foi atingida meses depois pelas ponderações acerca do teor romantizador da narrativa que trazia os motivos por trás de um suicídio. Assim, as temporadas seguintes foram cada vez mais rejeitadas e apontada sobre a abordagem que insistia nas polêmicas, ainda que com duros comentários. Dito isso, ter 365 Dias (365 dni, 2020) no top 2 do catálogo é apenas a recente integrante das empreitadas questionáveis.

Em 2011, quando o primeiro livro da trilogia 50 Tons de Cinza fez sucesso, foi só questão de tempo para que histórias similares tomassem forma: a história originada de uma fanfic inspirou mais fanfics e obras tão água com açúcar quanto os tons de Grey. Então, o gênero erótico, de enorme busca no meio literário, assim como em adaptações cinematográficas, se viu expandido na fórmula rasa que parecia misturar as raízes controversas dos contos de fadas em traços de histórias adultas. A moça ingênua, pura, encanta o gostosão musculoso, com pele tatuada, incapaz de amar, cobiça a amada, e no desfecho das descrições de noites quentes, a ingenuidade termina ensinando o brucutu a ser gentil.

A alta produção de histórias semelhantes não continham mais as características de autores inspirados nas próprias experiências sexuais, onde relatavam a autodescoberta de prazer e sexualidade, narradas em primeira pessoa, e sim, a caricatura com BDSM da Bela e a Fera refletidas em contos eróticos, idealizando como seria se a Fera exalasse masculinidade tóxica e Bela fosse submissa. Desta forma, chegamos a 365 dni, primeiro livro da trilogia polonesa de cunho fetichista escrito por Blanka Lipinska e publicado em 2018 — e da mesma forma, Ten dzien (Dez Dias) e Kolejne 365 dni (Próximos 365 Dias) também foram. Depois do burburinho que fez ao ser lançado em fevereiro deste ano na Polônia, a Netflix logo adquiriu os direitos de distribuição, trazendo para seus assinantes no dia 7 de junho.

O filme

“Laura foi sequestrada por um mafioso. Agora ela tem 365 dias para se apaixonar por ele”. É com essa tenebrosa sinopse que nos deparamos ao acessar o perfil do filme no catálogo. Daí você já entende o porquê da contagem de um ano no título e o quão bizarro é a trama por trás. Os motivos que levam alguém a assistir são distintos: a comparação com 50 Tons de Cinza (Fifty Shades of Grey, 2015), as cenas de sexo “explícitas”, o embate nas redes sociais de quem é o mais gostoso Christian Grey (Jamie Dornan) ou Massino (Michele Morrone), contudo, a curiosidade leva a algo em comum: mais visualização para película – inclusive, o fato de eu assistir a fim de escrever este texto.

Quem foi assistir esperando se aquecer nesta quarentena, vai se assustar ao perceber que até o Cine Band Privê tinha mais jeito para entregar cenas quentes, já que a coisa aqui flerta sobre o sexo explícito e corre em apresentar sequências exageradamente bizarras de soft porn. A grande questão não se resume numa caixa de promessas que por fim revela um sexo aquém do imaginado, mas por criar um conteúdo que se alimenta de inclinações pornográficas abusivas e agressivas para vender esta história que caminha em cima de absurdos.

Ao ser apresentado aos protagonistas deste abismo, o espectador já sofre com um desconforto das cenas. Contrapondo perfis, numa ponta temos Laura (Anna Maria Sieklucka) destacada em sua personalidade forte no âmbito profissional, enquanto Massimo esbanja masculinidade tóxica e hostil numa mesa de reunião. E se as diferentes características não estavam claras, destrincham seus fetiches numa cena que apela fortemente para um teor pornográfico ligado a figura de Massimo. 

Em seguida, a mulher de impressões empoderadas cai nas mãos de um mafioso que fez de tudo para possuí-la, partindo do vislumbre que teve dela em um momento de quase morte. Aos poucos, o que já adentra de forma ultrajante, vai abraçando ainda mais a contradição: “você tem 365 dias para se apaixonar por mim, até lá, se não conseguir, eu te solto”. são essas palavras que Laura ouve ao questionar o porquê estar em um lugar desconhecido, do homem que ora diz que não é para provocar alguém que teve tudo de maneira agreste, ora pede para ensiná-lo a ser delicado. Ou quando profere para não “tentar nada sem sua permissão” e ao sentir-se contrariado, avança com força para impor autoridade sobre Laura: puxando o cabelo, imprensando-a contra a parede, apertando seu pescoço por várias vezes, e finaliza afirmando que uma hora a terá e fará tudo o que quiser e quando preferir.

Se nas palavras do diretor de fotografia Bartek Cierlica, em entrevista à Variety “a relação começou com resistência e tentação, que envolvia o BDSM e aflorou no AMOR”, não surpreende a produção romantizar a submissão da mulher. O filme abriu mostrando Laura como uma mulher empoderada, exemplificando na postura ao lidar com o namorado egoísta, e findou com ela assumindo estar apaixonada pelo mesmo cara que a sequestrou e ditava como ela se vestiria ou não. Quando ou não seria sensual, e o pior, em dois meses ela solta um “eu te amo”, decide casar, além da gravidez.

Gritando machismo desde os primeiros minutos — em diálogo de pai e filho em que um diz “mulheres bonitas são o paraíso dos olhos, inferno da alma”; “e purgatório da alma”, completa o outro —, 365 Dias encerra com a mensagem da história de “amor” depois que Laura decidiu mostrar-se atraída pelo seu sequestrador. Simples assim. Agressivo, tóxico, mafioso e manipulador aprendeu a dizer “eu te amo” depois do sexo. O conto erótico da Bela e a Fera limada dos confins fanficários, desenha a moral do homem mutável que berra pela submissão da mulher.

Então, levanta-se a questão do quanto histórias de abusos serão romantizadas em prol do entretenimento. Aqui, pinta-se um romance, os cochichos de cenas fetichistas, e apesar dos inúmeros comentários sobre o perigo do conteúdo contraditório estar no segundo lugar de popularidade, aumentam as chances dos outros dois livros serem adaptados — atualizei esse post para dizer: as sequências estão sendo filmadas. É possível até imaginar novamente as mesmas discussões sobre a romantização da mulher envolta num relacionamento abusivo em uma produção que se vende como erótica, enquanto normaliza a paixão em situações de ultrajes físicos e psicológicos.

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A romantização do abuso como entretenimento

Dito isso, apontar as problemáticas parece não ter tanta força quando a internet se divide de forma banal comparando os intérpretes de Christian Grey e Massino, preocupados em visualizar mais do corpo de Michele Morrone e do seu pênis, acreditando no romance da narrativa contraditória, enquanto a pauta sobre mulher sendo mais uma vez vítima de tal cenário, colocada como objeto de satisfação e subordinação de um homem, indica não importar tanto,  se a curiosidade foi saciada com um pouco de sexo.

E a covardia de como tudo isso é passado para o público vai além dos diálogos bregas que só querem fomentar para o desenrolar do sexo, e sim nos ares de comédias românticas sobreposto como algo inofensivo de se assistir. Da mesma forma que o diretor de fotografia partilha da ideia de um romance preso que desabrocha, a narrativa maquia as nuances predatórias de Massimo através da fórmula vista nas comédias açucaradas: a mulher de personalidade forte que se apaixona por alguém com a personalidade babaca que sempre criticou nos caras. Também há a lição do homem que está disposto a mudar até de caráter, se for para fazê-la acreditar na seu “amor”. Adicione a isso uma montagem repleta de músicas pop a cada cinco minutos, momentos descontraídos de ostentação com roupas luxuosas, uma fotografia que provoca com a iluminação das cores compondo o clima sensual das cenas eróticas. Todos esses elementos trabalham diretamente em suavizar o contexto machista e abusivo, tornando a índole problemática um aperitivo saciável de entretenimento.

Como uma forma suave de conversar com o erótico, o soft porn é uma alternativa mais confortável para quem deseja evitar os moldes da pornografia, mas a pergunta é: ainda vale a espiada quando o mote por trás de todo o sexo romantiza um comportamento dominador e que colabora para o índice absurdo de feminicídio? Está tudo bem em consumir algo que normaliza a Síndrome de Estocolmo? Para o alto número de mulheres que sofrem abusos em cárcere privado, ou por cônjuges, é justo e atrativo uma produção estimular a visão da personagem que se apaixona perdidamente pelo homem que poda a sua forma de andar, se vestir, pelo exercício sexual que desenvolveram? “Não me provoque, pois quando eu te possuir, vou fazer o que e quando quiser”. Massimo repetir isso várias vezes de maneiras diferentes, quando Laura é sensual ou tenta sair da submissão, é como fantasiar casos até de estupros.

Claro que a escolha de Michele Morrone no papel de Massimo está atrelado aos estereótipos que o macho alfa pode causar ao público: “nem guindaste me tira de cima”, diz o meme.

Cabelo padrão, altura e um físico sinônimo de gostoso, é o que vai fazer o shipp render sobre o “casal”, o motivo? Oh, lá em casa… A tática é justamente usar o que vai trazer um efeito provocante ligado aos fetiches da audiência, apelando para pressupostos padrões pregados na sociedade do corpo ideal. Falar disso, me faz lembrar da série Good Girls (2017 -). De forma parecida, vimos um trio de protagonistas mulheres serem reduzidas da subversão de papéis e empoderamento, para a submissão de um gangster ao qual elas são obrigadas a lavar dinheiro com ameaça de morte. Na abordagem, a narrativa brinca com o suspense do que elas farão para se livrar de Rio (Manny Montana), coisa que Beth (Christina Hendricks) fez com sangue nos olhos para se desvencilhar, mas depois decidiram trazer o cara de novo.

Beth e Rio em Good Girls

Claro que há formas de tirar o cara da jogada, ainda mais porque a produção é sobre a  subversão feminina, mas os produtores insistem em manter Rio por perto, atiçando para entreter com o perigo que aquelas mulheres correm. Não sendo isso pouco, na segunda temporada colocaram um breve romance entre Beth e Rio, o que fez surgir as reações da “química do casal”, quando na verdade a protagonista queria mais que tudo se livrar das amarras que a fazia estar cada vez mais refém, e não era o sexo que tornaria o adversário amigável, sendo o miolo do relacionamento, o dinheiro. Como consequência, ainda há quem ache que o namoro dê certo por achar Rio atraente, e na tela, a postura corporal e expressões faciais de Beth gritando de desespero toda vez que o homem aparece.

A semelhança dos resultados de romantizar tais abusos é o mesmo: não há problema em prestar audiência quando o produto conversa exatamente com que idealizamos shippando casais? Se nas redes sociais os pombinhos de perfis verificados são cobrados por expectativas, se veem na necessidade de justificar o término do casamento ou namoro para os seguidores, aquela multidão sedenta fantasia acerca de casais fictícios, exigindo que o casal dê certo, independente das circunstâncias. É como se esperassem perfeição vindo deles, mas mesmo sendo personagens, há exemplos do cotidiano; reflexos de relacionamentos nas linhas do roteiro. 

Se tais ideias saem da sala dos executivos para a telinha, é porque sabem como será a resposta do público. Tendo a narrativa criando um típico atrativo em que várias histórias são vistas em gêneros diferentes, a romantização do abuso como forma de entretenimento passa batida quando a ação se desdobra misturando drama, comédia e suspense com ar de descontração, como 365 Dias e Good Girls. Mas, assim como após as ponderações sobre 13 Reasons Why possibilitou uma análise imediata dos lançamentos da Netflix, seguimos em não nos iludir com que a forma de contar a história possa esconder. Que o abuso da produção sensual da streaming não seja visto só como uma película brega para quem queria um pouco de ousadia, e sim como um retrato do que não deve mais ser aceito em silêncio na sociedade. 


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