Milton Bituca Nascimento – O sagrado se manifesta na pele

A primeira vez que ouvi Milton foi na escola: era um livro de alguma matéria de humanas, eu era uma criança de menos de 8 anos e lá estava escrita a letra de Canção da América. A professora colocou para tocar e eu senti aquela voz em mim – porque é tudo sobre sentir, a experiência é, antes de tudo, corporal. Dessa forma, fica gravada na pele, nas camadas profundas da derme, onde as coisas não se apagam. Não lembro da matéria, não lembro da professora, não lembro porque ouvimos, mas da voz dele eu lembro até hoje, mais de duas décadas depois. 

Nessa época, ele já era uma lenda viva. O documentário Milton Bituca Nascimento (2024) retrata um pouco dessa trajetória que a “eu-criança” não fazia ideia, enquanto o acompanha na turnê de encerramento de sua carreira nos palcos – essa, sim, que eu fiz ideia e tive o privilégio de comparecer.

A narração na voz de outra imortal – Fernanda Montenegro – deixa claro desde o primeiro minuto que a proposta é de reverberação. 

Reverberação. sf.

ação ou efeito de reverberar; reflexão, revérbero.

“r. da luz, do calor”

física

persistência de um som depois de ter sido extinta sua emissão por uma fonte e que ocorre como resultado de reflexões nas paredes de um recinto total ou parcialmente fechado.

A física corrobora com as sensações da pele. Reverberar um Milton é cumprir um propósito sagrado de brasilidade, dessa natureza que nem a física explica. 

O passeio do documentário pela geografia das montanhas de Minas Gerais, do trem de ferro, da pedra, do café, do minério, do silêncio… ele desenha uma trajetória essencial do que Milton traz de ancestralidade genuína. Bituca nasce no Rio, se torna quem é em Minas, mas é, também, um negro brasileiro. A travessia, de mares de morros, de sobes e desces, pode ser acompanhada pelo crescente de sua história. 

Atravessar, reverberar, aglutinar. 

A capacidade aglutinadora de Nascimento também é cantada. Ele junta, ele traz para perto, ele orbita e se faz orbitar. Ele cria um clube em cada esquina e faz vir à tona aquela marca de fé que a racionalidade não explica e até estragaria.

Viva a experiência de sagrado que ouvir Bituca promove, viva a propriedade divina de ver nossos heróis vivos, de homenageá-los vivos, de nos despedirmos da morte, porque ela não será capaz de levá-lo! Porque o santo deve ser isso: a experiência de imortalidade momentânea que a arte e o artista nos trazem. Poder viver no mesmo tempo que Milton, vê-lo a poucos metros a cantar sua sinfonia própria de cordas vocais intactas – mesmo que o corpo não – tudo isso é reza, é fé, é mensagem etérea e é tocar o eterno.

Obrigada, obrigada.


Por Jayane Ribeiro


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