Ano passado o grande vencedor do Oscar na categoria de longa documentário foi o aclamado 20 Dias em Mariupol (20 Days in Mariupol, 2023) um filme realmente impressionante, realizado por um grupo de jornalistas que, após o início da invasão russa à Ucrânia, fica preso em meio ao conflito, conseguindo, assim, registrar imagens de tirar o fôlego e algumas entrevistas extremamente dolorosas com cidadãos que acabavam de perder suas casas e/ou entes queridos. Apesar de algumas ressalvas ao documentário, especialmente em relação à sua abordagem e seu caráter mais jornalístico que cinematográfico, compreendo perfeitamente a atenção que um filme como este alcançou, já que as categorias de documentário no Oscar são historicamente uma janela para pautas geopolíticas atuais, e os conflitos entre nações geralmente aparecem como tema principal dos filmes que concorrem nestas categorias.
Tanto que antes mesmo do vencedor de 2024 os conflitos ucranianos e sua delicada relação com o governo russo já haviam aparecido no Oscar em 2016, com o documentário Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom (2015), sobre as manifestações que ficaram conhecidas como Euromaidan, iniciada na capital Kiev em 2013, que exigiam a renúncia do então presidente pró-Rússia Viktor Yanukovytch. Nesta edição de 2025 a Guerra Russo-Ucraniana ganha novamente holofotes através do documentário Guerra da Porcelana (Porcelain War, 2024).
O filme, dirigido por Brendan Bellomo, conta sobre Andrey Stefanov, Anya Stasenko e Slava Leontyev – que é também creditado como co-diretor -, três ucranianos que após o início dos conflitos decidem ficar em sua cidade natal, Kharkiv, próxima à fronteira com a Rússia, numa tentativa de resistir à invasão, seja lutando, seja treinando civis para a luta armada, já que Slava tem experiência militar, ou mesmo controlando drones e fabricando bombas para conter o avanço das tropas russas. Enquanto isso, os três – especialmente Anya – tentam continuar fazendo o que faziam antes da guerra: pequenas e delicadas esculturas de porcelana, pintadas com extrema graciosidade. São corujas, caracóis, dragões e cavalos alados, estilizados com cores e representações em sua superfície, um trabalho que exige enorme paciência e cuidado. Fica, então, óbvia a ironia contida no que estamos vendo: enquanto lutam uma guerra, contra tanques e utilizando armamento pesado, a arte, com toda sua beleza e singeleza, demonstra uma forma de resistência, como se o claro contraste nos pudesse fazer refletir sobre ambas as experiências – a artística e a militar – de forma profunda, percebendo suas divergências e semelhanças. Até aí tudo bem… só que não.
Eu compreendo que é muitíssimo difícil para pessoas que não passaram por situações extremas como uma guerra ou um conflito armado, seja ele qual for, se colocar no lugar ou sequer imaginar estar nesta situação. Compreendo que grande parte das pessoas, provavelmente a maioria, que participa diretamente de um conflito envolvendo armas, que coloca não apenas sua própria vida em perigo, como também a de entes queridos e até mesmo a aniquilação de suas raízes natais e com ela parte de sua cultura de vida, não deseja estar ali, muito pelo contrário. E claro, em nenhum momento imaginei que os três principais personagens de Guerra da Porcelana fossem uma exceção a isto, inclusive, podemos sentir bastante a dor de ter que se afastar de familiares e ter uma longa parte da vida perdida por conta dos conflitos. Tudo isso eu consigo compreender na medida do que me é possível. O que tenho dificuldade de compreender é por qual razão senti que de alguma maneira o documentário acaba romantizando a guerra.
Claro que pode ser uma impressão equivocada de minha parte, e eu realmente espero que tenha sido, mas o que percebi ao ver as imagens – filmadas por Slava, logo, de um ponto de vista dele – ou ao ouvir os relatos dos três foi que apesar de toda dor causada, não há outra saída que não seja revidar com tudo o que for possível, e não creio que este sentimento venha de uma revolta pelo que o conflito causou e causa, mas sim uma questão de honra. É notável o orgulho militarista que os dois homens do trio enfatizam em suas falas e ações, quase como se tivessem ansioso pela luta. O cotidiano mostrado no filme não parece o de pessoas que temem o pior, mas sim como se todos naturalizassem a zona de guerra, ainda que lamentem o que ela os fez perder. O viés reacionário é tamanho que acaba praticamente apagando o que parecia inicialmente ser um dos focos do documentário: as figuras de porcelana, a arte, em meio à guerra, demolindo qualquer profundidade que a metáfora poderia refletir para o espectador.
Guerra da Porcelana acaba não tendo a força que os documentários anteriores sobre o tema que apareceram no Oscar tiveram, pelo contrário, acaba criando uma visão mítica e romanceada da guerra, fazendo exatamente o contrário do que se espera de uma obra de arte engajada, não funciona como denúncia, não funciona como crítica ao conflito e não funciona nem mesmo como relato. Passa apenas uma mensagem que não soa em nenhum momento verdadeira, o que, se tratando de um documentário, pode ser bastante problemático.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.