Nosferatu – Um terror em três atos

O fascínio de uma história ultrapassa seu tempo. O mito do vampiro vem de uma longa tradição, mas é no século XIX que encontra sua forma mais conhecida no romance de Bram Stoker, Drácula (1897). De lá para cá, esse mito foi recontado diversas vezes, seja através da própria literatura ou de outras mídias, como o cinema. Nas cartelas iniciais do filme de 1922, de F.W. Murnau, há a informação de que o filme era uma livre adaptação do romance Drácula, de Bram Stoker, realizada por Henrik Galeen, roteirista do filme. Essa livre adaptação ocorreu porque os direitos autorais da obra não haviam sido liberados. Por essa razão, os nomes das personagens, cidades e do próprio Drácula foram alterados. Cabe ressaltar, que houve outros filmes que abordaram a temática do vampirismo ou terror antes, o próprio Georges Méliès já havia produzido filmes assim no final do século XIX e na primeira década dos anos de 1900.

O filme homônimo ao livro de Stoker, adaptado de uma peça teatral, só chegou aos cinemas em 1931, com direção de Tod Browning e Bela Lugosi no papel do Conde Drácula. Ao longo dos séculos XX e XXI, foram diversas adaptações do texto original para diferentes tipos de mídia, seja a própria literatura, por meio de romances ou de fanfics, seja para o cinema, teatro, videogame etc.

Portanto, o grande desafio de realizar um filme em 2024 com uma narrativa que fez sucesso pelo menos duas vezes ao longo da história do cinema — seja na icônica versão de 1922 de Nosferatu, dirigida pelo F.W. Murnau, no apogeu do cinema não falado alemão, ou na mais recente versão de 1979, do diretor Werner Herzog — é transpor para o público um sentimento que não foi abordado antes. Essa abordagem pode vir de várias frentes, seja mudando elementos da história principal, roteiro, atuações, personagens etc.

Nosferatu (2024), dirigido pelo estadunidense Robert Eggers, mesmo diretor de A Bruxa (The VVitch: A New-England Folktale, 2015) e O Farol (The Lighthouse, 2020), tinha um árduo trabalho na tentativa de manter o mesmo nível de seus antecessores ou de subverter a história de um jeito novo e inesperado, seja para o público ou para a crítica.

Para isso, cabe algumas pontuações sobre os dois filmes mais famosos, o de 1922 e o de 1979. Gostaria de destacar que, por ser uma livre adaptação do romance de Bram Stoker, alguns elementos cruciais para o entendimento da história ficam relegados a um segundo plano ou sequer são mostrados. A sinopse é igual para os três filmes: o protagonista recebe a missão de ir a um lugar inóspito com o intuito de vender uma casa na cidade que ele vive para o Conde (nos filmes de 1922 e de 2024, ele se chama Conde Orlok; no filme de 1979, ele adota o nome de Conde Drácula). Chegando lá, o protagonista fica preso no castelo, enquanto o vampiro volta para a cidade para cumprir seu desejo: ficar com a mulher do personagem principal. Essa é a sinopse mais geral e genérica possível.

O filme não falado de 1922 faz isso de maneira bem interessante para os recursos da época, seja pela montagem ou pela estética expressionista. Os cenários, sobretudo os internos, são uma relíquia do cinema que merece e deve ser reverenciada. É praticamente impossível adaptar Drácula sem os direitos, e o filme de 1922 o faz, se não de maneira genial, ao menos com o maior esforço possível. Dizemos isso porque claramente o filme não explica certas relações entre as personagens, como a de Conde Orlok, vivido por Max Schreck, e Ellen, vivida por Greta Schröder, esposa de Thomas Hutter, o protagonista, interpretado por Gustav von Wangenheim.

Já no filme de 1979, temos uma corajosa revisão ao clássico de 1922, trazendo elementos novos não só para a história original, mas também para a mitologia do vampiro. Lucy Harker, interpretada por Isabelle Adjani, assume o papel de protagonista e de resolver todo o embaraço trazido pelo seu marido e pelo Conde Drácula. De longe, esse é o filme mais autoral, que pretende sair do modelo clássico de contação de histórias. Não à toa, é um filme premiado pelo seu elenco, direção e design de produção.

Chegamos, então, ao filme de 2024, no qual, devido ao histórico de seu diretor, esperávamos algo realmente diferente do que foi feito até então. Infelizmente, o filme não faz isso. O que temos é um deleite visual. É extremamente bem filmado, com boas soluções de montagem e transições, que criam um clima assustador, mas que não aproveita esse clima de forma eficaz. Visualmente incrível, conteudisticamente paupérrimo.

O filme não busca aprofundar as relações das personagens. Não sabemos a ligação entre Ellen Hutter (Lily-Rose Depp) e Conde Orlok (Bill Skarsgård), por exemplo, nem o motivo pelo qual ele se alimenta de sangue e é imortal. O que temos é uma atuação caricata, conveniente e estereotipada de Willem Dafoe (Prof. Albin Eberhart Von Franz), que serve para explicar ao público os conceitos e anseios por trás da lenda. Era uma excelente oportunidade para aprofundar a mitologia do vampiro e trazer novos elementos para a cultura gótica, mas o filme não faz isso. Inclusive, há um erro grotesco de roteiro. Em determinado momento, o personagem vivido por Willem Dafoe diz que o vampiro não pode viver longe de sua terra natal e que não age durante o dia. Acontece que, cerca de 20 a 30 minutos antes, o encontro entre Conde Orlok e Thomas Hutter, interpretado por Nicholas Hoult, acontece durante o dia. Todas as atuações são em um inglês que mistura um alemão altamente estereotipado e caricato, sustentado pela arrogância hollywoodiana em achar que é o centro do mundo (e do cinema).

O alemão, língua mãe e predominante da equipe dos dois primeiros filmes, aqui é utilizado de forma extremamente caricata, misturando-se com o inglês e o latim. Aliás, esse é outro ponto que não faz sentido: os diálogos estão em inglês com sotaque em alemão, mas as personagens falam em algum momento em latim. Embora as línguas façam parte da grande linha indo-europeia, não faz sentido a mistura no meio do diálogo, e o uso de determinado tipo de latim é usado para validar o medo, como se, ao falar em latim, fosse algo necessariamente tenebroso. Em certa medida, isso nos lembra outro filme, Silêncio (Silence, 2016), dirigido pelo brilhante Martin Scorsese. Silêncio é um filme sobre padres portugueses e jesuítas, interpretados por Andrew Garfield, Adam Driver e Liam Neeson, atores que não falam português e que, durante o filme, misturam o português com o inglês. Ou trazem atores portugueses para interpretar personagens portugueses, ou assumem o papel da indústria e deixam tudo falado em inglês, algo que já seria esperado, principalmente de um filme vindo da indústria americana. Nosferatu (2024) poderia ter atores alemães ou ser falado todo em inglês; essa mistura de idiomas, com sotaques estereotipados, é ofensiva (o que também vale para o filme de Scorsese) e não agrega nada narrativamente à história.

A trilha sonora de Robin Carolan – que também compôs a trilha de O Homem do Norte (The Northman, 2022), filme anterior de Eggers – deveria dar sustentação ao clima de medo e de tensão ao longo do filme, mas, em determinados momentos, ela se mostra genérica demais, com o uso excessivo de graves a ponto de incomodar. Nada parece acertado no filme.

Visualmente bonito, mas vazio por dentro. Poderia ser a definição de boa parte da sociedade contemporânea, mas é apenas Nosferatu (2024), que entrega uma cinematografia bonita e competente, mas que falha na construção do roteiro e nas relações entre as personagens, embalado por uma trilha sonora que não empolga e que não sustenta o filme de terror. Eggers parece forçar, em seu filme, um apelo nostálgico ao mito do vampiro, inclusive se aproximando demais do filme de 1922, mas falha em atualizar a história para debates mais atuais, optando por reforçar estereótipos negativos. Ele foge de entregar uma narrativa coerente e digna a uma história centenária.


VEJA TAMBÉM

O Farol – Nossa mente é tão traiçoeira quanto o mar

Missa da Meia-Noite – E as pessoas que nunca leram Bram Stoker