O Rei Leão (The Lion King, 2019) talvez tenha sido um dos remakes, refilmagens, mais mal recebidos da Walt Disney. Por mais que a empresa tenha dito claramente que o filme era um “copia e cola” da animação de 1994 só que em uma animação realista, não impediu que muita gente esperasse que a animação fosse um pouco cartunizada e que tivesse cenas extras mostrando o passado de Mufasa e Scar. Tentando fazer uma mea culpa, reconhecer o erro anterior, vem então Mufasa: O Rei Leão (Mufasa: The Lion King, 2024), um filme exclusivamente sobre os personagens irmãos, com mais traços humanos nos animais. Se deu certo, é uma outra questão.
Em Mufasa, acompanhamos a história do icônico leão título, contada por Rafiki (voz de John Kani) para Kiara (voz de Blue Ivy Carter), Timão (voz de Billy Eichner) e Pumba (voz de Seth Rogen), enquanto Simba (voz de Donald Glover) e Nala (voz de Beyoncé Knowles-Carter) estão fora para o nascimento de seu novo filhote. Descobrimos que Mufasa (voz de Aaron Pierre) foi separado de sua família ainda muito jovem enquanto procuravam o caminho para Milele, um lugar mítico e verdejante, e é acolhido pelo filhote Taka (voz de Kelvin Harrison Jr.) e seus pais Eshe (voz de Thandiwe Newton) e Obasi (voz de Lennie James), governantes da região. Ele cresce com seu novo irmão e mãe enquanto é rejeitado pelo rei, até que uma alcateia de leões desgarrados ameaça o grupo, o que leva Mufasa e Taka e irem embora em busca de um novo lar.
O filme é dirigido por Barry Jenkins, que esteve à frente dos premiados e elogiados Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016) e Se a Rua Beale Falasse (If Beale Street Could Talk, 2018). O roteiro é de Jeff Nathanson que esteve no roteiro do filme anterior, no de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull, 2008) e de Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar (Pirates of the Caribbean: Dead Men Tell No Tales, 2017). A fotografia é de James Laxton, que trabalhou com Barry Jenkins em Moonlight e Se a Rua Beale Falasse. A trilha sonora é de Dave Metzger que trabalhou no filme anterior, em Frozen II (2019) e Wish: O Poder dos Desejos (Wish, 2023) e as músicas foram compostas por Lin Manuel-Miranda, responsável pelas músicas de Moana (2016) e Encanto (2021).
A dublagem brasileira está muito boa, mantendo os dubladores do filme anterior para as personagens que se repetem, Ícaro Silva como Simba, IZA como Nala, Ivan Parente como Timão, Glauco Marques como Pumba e Bukassa Kambengele como Rafiki. Fazendo a voz de nossos protagonistas estão Pedro Caetano, que esteve recentemente em DNA do Crime (2023 -) e em Meu Amigo Pinguim (2024) como Mufasa, Hipólyto que esteve em Últimas Férias (2023 -)e que será Fieyro na montagem de 2025 do musical Wicked, como Taka/Scar. Luci Salutes dá voz a Sarabi, Eduardo Silva, o famoso Bongô do Castelo Rá-Tim-Bum (1994 – 1997), é a voz do Rafiki jovem, Fábio Azevedo é o vilão Kiros e Morena Machado é Kiara.
Falando tecnicamente
Esse filme vai receber prêmios técnicos, com certeza. A animação é incrível, sem dúvida os memes comparando-o a programas do National Geographic ou do Animal Planet vão voltar com tudo, mas sim, os rostos dos animais estão mais antropomorfizados, com sorrisos mais humanos e mais expressão nos olhos.
A fotografia e a direção trabalham bem juntas, passeando pelo mundo, aproveitando bem o mundo animado criado para o filme, apesar de a montagem fazer cortes muito estranhos. As músicas são legais, mas nada de mais, melodias e batidas boas, mas letras meio básicas, o trabalho de Lin pareceu pouco inspirado, como se tivessem cerceado um pouco sua criatividade.
Muita responsabilidade
O fato de o filme de 2019 ter feito uma boa bilheteria, mas não ter caído nas graças de quem é fã do filme de 1994 claramente gerou uma frustração. Esse novo filme, além de querer muito agradar, tem muito medo de desagradar, o que o faz ficar em uma zona segura de pouca ousadia.
Mufasa faz um paralelo quase perfeito com a história de Moisés, aquele mesmo, da Bíblia. Separado de sua família ele, um plebeu, é acolhido por um rei e uma rainha se tornando então irmão de um príncipe que é seu melhor amigo e companheiro de crimes, mas acaba sendo preterido pelos pais por ter maiores habilidades ao invés dele e guia vários animais para a terra prometida.
Também é acrescentada na história a origem de Sarabi – a mãe de Simba -, Zazu e Rafiki, sendo a desse último um dos pontos altos do filme.
Então…
O problema é que além da falta de ousadia, do medo de mexer em Mufasa, um personagem tão querido e memorável, acaba-se perdendo a chance de contar uma história muito mais potente. Mufasa é tão irritantemente perfeito desde sempre, sendo sempre o Mufasa que conhecemos como pai de Simba, que acompanhá-lo fica até mesmo maçante, já que sabemos aonde ele vai chegar e já é perfeito o tempo inteiro. Um protagonista que não aprende lições, que não comete erros e tem que encarar as consequências das mesmas, que não tem provações, se torna pouco crível e desinteressante de acompanhar. Poderiam ficar no básico e investir na história de um rapaz arrogante por seus instintos tão apurados que causaria alguma tragédia e passaria a se redimir, funcionaria bem demais.
Tudo bem que Mufasa é quem acaba despertando a ira de Kiros, mas pouca importância tem o que ele fez para isso, é um momento que quando é exibido, você nem acha que vai ser algo importante e quase não é falado depois disso. Enquanto a história é contada, é interrompida várias vezes por esquetes com Timão e Pumba que quebram completamente a imersão e o clima. Poderia acontecer umas duas ou três vezes, mas acontecem o tempo todo. Se fossem apenas observações de Kiara, tudo bem, mas existe uma insistência para que Timão e Pumba façam piadas – muitas vezes a mesma, repetidamente – e quebrem a quarta parede, de um modo que não se encaixa com a história principal e fica chato ao invés de divertido.
Fora isso a história tem elementos demais! A busca por Milele, o medo de água, o estigma do desgarrado, a relação com Taka/Scar, o romance com Sarabi, o conflito com Kiros, que acaba sendo a corda que vai amarrar tudo… E ainda assim, ao final do filme, fica a sensação de que ele poderia facilmente ter uns 20 minutos a menos. Com tanta coisa o ritmo é tão acelerado que motivações ficam mal desenvolvidas e, apesar de não serem, parecem ser fracas.
Cadê os créditos pros fãs?
Se você é mais nerd da Disney ou da franquia Rei Leão, sabe que a história de origem de Mufasa e de Scar já foi contada algumas vezes.
Em The Lion King: Six New Adventures, uma coleção de livros spin-off inspirados no filme de 1994, conta com a história “Um conto de dois irmãos” escrita por Alex Simmons onde Kopa, filho de Nala e Simba ouve de Rafiki uma delas. Onde Rafiki era um andarilho que encontrou o rei Ahadi e a rainha Uru, assim como seus dois filhos Mufasa e Taka, tendo o segundo uma relação mais complicada com o pai e inveja do irmão, o herdeiro do trono. Influenciado pelas hienas, Taka decide humilhar Mufasa para que ele pare de ser o filho favorito e o faz tentando resolver com violência um conflito com um búfalo que o irmão queria resolver no diálogo, o que o dá sua cicatriz. Depois de tudo, Ahadi diz que Taka deveria usar a cicatriz como lembrete de suas ações e ele próprio decide se chamar de Scar. Para es teoristas de plantão do universo de Rei Leão, essa história seria pura mentira criada por Rafiki, para ensinar uma lição a Kopa.
E só pra esclarecer, sim, Kopa foi muito esquecido no churrasco na hora de ser feito a segunda animação, algumas pessoas da equipe sequer sabiam da existência desses livros, mas os diretores realmente só não gostaram do conceito da personagem e criaram uma nova.
Mais tarde, em A Guarda do Leão (The Lion Guard, 2015 – 2019), série que se insere no universo do filme de 1994 e de sua continuação de 1998, acompanhamos Kion, irmão mais novo de Kiara. Na segunda temporada da série, o fantasma de Scar é invocado pelos vilões e no primeiro episódio da terceira temporada “A Batalha pelas Terras do Reino” ele mesmo conta sua história. Seu nome verdadeiro era Askari, em homenagem ao seu avô de mesmo nome, e ele era o líder da guarda do leão em seu tempo – explicando rapidinho: na série basicamente, o primeiro filho do rei é o herdeiro do trono, no caso Mufasa e depois Kiara e o segundo acaba recebendo o poder do rugido e se torna o líder da guarda do leão, como uma espécie de guarda do reino, no caso, Scar e Kion -, quando recebeu uma mordida de uma cobra, amiga de um leão malvadão sem nome, ele ganha sua cicatriz e fica envenenado.
O leão tenta chantagear Askari, dizendo que o curaria se ele o obedecesse, mas ele se recusou e matou os dois com o poder do rugido. Quando ele foi para Mufasa contar a história do que aconteceu, o mais velho riu dele e o apelidou de Scar, um trocadilho com seu nome verdadeiro nessa versão e a palavra cicatriz em inglês. Depois disso o veneno mudou a personalidade de Scar, o tornando mal e sombrio, o levando até a perder seu poder ao abusar dele.Eu gosto dessa versão por mostrar um Mufasa mais imperfeito e até responsável um pouco pelo que o irmão se tornou, mas toda a história do veneno não me desce muito.
E é claro, existem as teorias dos fãs, muitas inclusive você pode conferir no canal do Imaginago no YouTube, ele é basicamente uma autoridade no assunto. Sendo algumas das principais: Mufasa ser preterido pelos pais pela força ou ser preterido pelo pai enquanto o irmão era preterido pela mãe, e ainda que Mufasa teria sido o responsável pela cicatriz de Scar em uma luta ou pelo amor de Sarabi ou pelo direito de governar.
Esse filme que estreou agora é basicamente uma grande mistura disso tudo para criar uma história nova, deixando esse cânone ainda mais confuso e abraçando muito do que fãs discutem até hoje na internet. Só faltou o nome dessas pessoas nos créditos, mas talvez esse protagonista sem nuances faça elas quererem ficar de fora mesmo. O que se mantém é o que já sabemos Mufasa é show e Taka/Scar, nem tanto, aqui mostrando inclusive que o próprio pai o teria ensinado e incentivado a ser manipulador e preguiçoso.
Mufasa: O Rei Leão, é um filme legal. Só isso. E tudo bem, é divertido, eu assistiria de novo, mas não no cinema. Talvez marque algumas pessoas, mas dificilmente vai ficar na memória da maioria. É um pão com ovo decente, mas poderia ser muito mais interessante. Talvez tenhamos mais continuações, agora com Kiara e seu ainda não nomeado irmãozinho mais novo, se serão mais cópias ou histórias originais pouco ousadas é que fica a questão.
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Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.