Lobisomem – Entre a segurança do clássico e o frescor do moderno

Lobisomens do folclore pro cinema

O lobisomem sempre foi uma das criaturas do folclore que mais me aterrorizaram desde a infância e, além de ser uma pessoa nascida no interior do Ceará, onde o mito perdura até os dias atuais, o cinema teve uma imensa contribuição para a perpetuação deste meu medo. As história sobre homens que se tornam feras aparentadas a lobos remontam à mitologia greco-romana e se consagrou no folclore europeu passando pela Idade Média e ganhando força até ser trazido às Américas pelos colonizadores à partir do século XVI. No Brasil, a lenda importada pelos portugueses ganhou força no período colonial e fundiu-se imediatamente à cultura e ao folclore local, especialmente nos rincões interioranos de um Brasil ainda pouco desbravado e onde a dita “civilização” demorara a chegar.

O cinema, logo em seus primórdios, apoderou-se da figura do lobisomem e já em 1935, início do cinema falado, temos a primeira versão do monstro nas telas com O Lobisomem de Londres (Werewolf of London), dirigido por Stuart Walker, dando prosseguimento a toda uma linhagem de monstros iniciada pela Universal Pictures que já contava com Drácula (Dracula, 1931), Frankenstein (1931), A Múmia (The Mummy, 1932) e O Homem Invisível (The Invisible Man, 1933), mas foi com O Lobisomem (The Wolf Man, 1941), de George Waggner, que o icônico monstro ganhou real notoriedade, habitando de vez o imaginário popular dos espectadores. De lá para cá inúmeras versões da criatura foram levadas ao cinema, desde filmes com foco no lobisomem propriamente dito, quanto com  os licantropos (termo que passou a ser usado para se referir a este tipo de monstro) aparecendo como coadjuvantes, com histórias diferentes e variando suas origens entre o folclore mais tradicional e a fantasia, como ficou famoso nos RPGs.

Após uma fracassada tentativa de reviver seus monstros clássicos em uma espécie de universo compartilhado com o fraquíssimo Drácula: A História Nunca Contada (Dracula Untold, 2014) e depois com o pavoroso A Múmia (The Mummy, 2017) a Universal desiste de seu novo Dark Universe. Mas eis que em 2020 a produtora em franca ascensão Blumhouse Productions, focada em obras de terror e horror, pega para si a responsabilidade pelo projeto e recomeça o Dark Universe, agora com a Universal apenas distribuindo os filmes. O primeiro a ser adaptado foi uma aposta pouco gananciosa, com um dos monstros menos famosos do antigo panteão da Universal, no entanto O Homem Invisível (The Invisible Man, 2020) foi um sucesso estrondoso e uma das melhores surpresas daquele ano no gênero, com uma atuação memorável de Elisabeth Moss e uma direção segura de Leigh Whannell, que além disso escreve um roteiro cheio de subtextos sociais contemporâneos, modernizando a personagem, mas sem trair a aura do clássico.

Mais um passo pro sucesso de um novo Dark Universe

O sucesso do pontapé inicial da Blumhouse deu fôlego para que um novo Dark Universe realmente engrenasse, com filmes mais focados do horror e no terror, sem apelar para o tom aventuresco da tentativa anterior, abrindo precedente para obras mais adultas e até autorais. O segundo passo demorou a ser dado, mas reflete o peso da responsabilidade e do respeito que a produtora está dando para o projeto, e chega agora com O Lobisomem (Wolf Man, 2025), novamente com Leigh Whannell na direção e no roteiro, escrito ao lado de Corbett Tuck.

Nesta nova versão do monstro Whannell decide pelo caminho do minimalismo ao contar a história de forma simples e sem muitos rodeios. Iniciando com uma breve cartela explicativa que nos direciona para uma versão “científica” da licantropia, mas que crava o pé no folclore nativo americano. Iniciando em meados da década de 1990 somos apresentados a um homem e seu filho ainda criança vivendo numa casa em meio a uma área montanhosa no estado do Oregon, nos Estados Unidos. Ambos saem para caçar, o que parece ser uma atividade cotidiana dos dois, e no percurso percebemos a complexa mas conhecida relação entre pai e filho, com o primeiro agindo de forma professoral, tentando passar ao filho sua vasta experiência com o belo e perigoso mundo selvagem, mas por outro lado apresentando uma criação extremamente rígida e por vezes até violenta com a criança. Neste dia ambos passam por uma experiência traumática quando uma criatura estranha os persegue em meio à floresta numa sequência cheia de tensão, mas mostrando pouco do que realmente os estava caçando.

Interpretações e efeitos práticos assustadores

Trinta anos depois, Blake (Christopher Abbott) já não é mais aquele menininho e tem sua própria família. É um escritor amador e o pai atencioso de Ginger (Matilda Firth), de 9 anos, e marido da jornalista Charlotte (Julia Garner), com quem tem um relacionamento claramente abalado. Após receber a notícia de que o Estado finalmente reconheceu o falecimento de seu pai, a tempos desaparecido, Blake herda as chaves de sua antiga casa nas montanhas e vê ali uma oportunidade de reavivar os laços entre sua esposa com ele e a filha. Partem então em viagem em um caminhão de mudanças alugado e ao se aproximarem do destino encontram um estranho homem que vive isolado naquela floresta e que diz conhecer o pai de Blake e a estranha história que cerca seu desaparecimento. Os eventos que se seguem à partir disso são um crescente de tensão e perseguições angustiantes.

Mais uma vez Whannell se mostra um excelente criador de ambientes de suspense, controlando o tempo certo de cada acontecimento com precisão para afetar os nervos de quem assiste. As escolhas de movimentos de câmera e ângulos são minuciosos, firmando a bem sucedida parceria entre o diretor e o fotógrafo Stefan Duscio, com quem trabalha desde sua primeira direção. Além disso, ambos utilizam a preponderante escuridão que permeia a maior parte da obra a seu favor, sabendo que o desconhecido é o pai de todos os medos. Por outro lado, quando vemos a criatura e após os primeiros sinais de que Blake fora afetado fisicamente pelo estranho animal, o filme não se exime de detalhar na medida o visual grotesco de ambos, num trabalho de maquiagem e efeitos especiais práticos que torna tudo ainda mais crível. Isto, aliado à performance corporal assustadora de Christopher Abbott, compõe uma das melhores transformações de lobisomens que já vi no audiovisual, fugindo das famosas transformações imediatas que nos acostumamos a ver, esta acontece de forma lenta e gradual, tecendo um paralelo com algo parecido com uma infecção me fazendo lembrar alguns zumbis que já vi no cinema.

Roteiro minimalista e efetivo

Ainda que o roteiro não traga grandes reviravoltas narrativas, ou ao menos nada que não consigamos prever facilmente, este, como já havia mencionado, é um roteiro minimalista, que pretende não enriquecer a já rica mitologia dos lobisomens, mas principalmente tratar dos instintos de sobrevivência de uma família ao mesmo tempo que nas entrelinhas aborda a relação entre os três. E aí chegamos à incrível Julia Garner como Charlotte, que mesmo sendo inicialmente coadjuvante ou co-protagonista, nos entrega uma personagem complexa que vai ganhando forma e tomando pra si o protagonismo em meados do longa, quando passamos a intercalar os pontos de vista dela e seu marido. Garner se confirma como uma das melhores dessa nova geração de Hollywood com uma interpretação estranha de uma mãe que parece ainda estar aprendendo a sê-lo e que deseja retomar sua família e protegê-los.

Lobisomem é mais um acerto deste novo Dark Universe, que cada vez mais vem se mostrando promissor em apontar seus projetos para um caminho realmente sombrio, ao mesmo tempo em que não abre mão de os fazer de forma a tratar de temas profundos como relações familiares e/ou amorosas, nos fazendo ter muito medo de algo, mas também sentirmos nossa humanidade com as emoções e os sentimentos que nos são próprios. Já aguardo ansiosamente o próximo passo deste projeto, que já tem data marcada para 2026 e será a nova versão de A Múmia, dirigido por mais um expoente do gênero na atualidade, Lee Cronin, do ótimo A Morte do Demônio: A Ascensão (Evil Dead Rise, 2023).


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