Com um sentimento inquietante de que nunca resolvemos os crimes da Ditadura Militar no Brasil. É com essa sensação que Zé (2024), filme de Rafael Conde, inspirado no livro homônimo de Samarone Lima, termina. Em um tom desesperador e que praticamente intima o espectador a se envolver para “resolver” a história que acabamos de ver e ouvir, Zé conta a história de José Carlos Novaes da Mata Machado, preso e morto em 1973, durante a Ditadura Militar no Brasil nas dependências do DOI-CODI em Recife. Como todas as histórias sobre mortos, torturados e desaparecidos durante a Ditadura, também me emocionei com essa.
Contexto histórico
A Ditadura Militar refere-se ao regime instaurado no Brasil de 1964 a 1985, onde um número absurdo de pessoas foram presas, torturadas e mortas por militares, incluindo a ex-Presidenta Dilma Rousseff, o jornalista e cineasta Vladimir Herzog, o engenheiro civil e político Rubens Paiva, entre muitos outros. Segundo levantamento da Human Right Watch, 20 mil pessoas foram torturadas durante o período. Com o falso discurso de uma “ameaça comunista”, o golpe durou longos 21 anos e causou danos irreversíveis na história de famílias brasileiras e da nação.
Zé
José Carlos Novaes da Mata Machado, o Zé, era um dos líderes do movimento estudantil contra a Ditadura, dirigente da Ação Popular Marxista-Leninista, viveu na clandestinidade de 1969 a 1973, quando foi preso em São Paulo e levado à Recife, o mesmo ocorreu com seu companheiro de luta, Gildo Lacerda. Ambos foram mortos sob tortura. Entretanto, a história veiculada nos jornais da época era que Zé e Gildo haviam sido mortos por um outro colega de militância, de codinome “Antônio” após delatar um dos pontos de encontro da Ação Popular. Nesse ponto de encontro, “Antônio” percebeu algo de errado e abriu fogo contra Zé e Gildo. A história usada para encobrir não só a morte de ambos, mas o desaparecimento de um terceiro, Paulo Stuart Wright, o “Antônio”, ficou conhecida como “Teatro de Caxangá”. Apenas em 1992 que Gilberto Prata Soares, cunhado de Zé e irmão de Maria Madalena, a Madá, declarou que havia colaborado com o Centro de Informações do Exército (CIE), delatando sobre membros da Ação Popular, confirmando, enfim, que Zé não havia traído seus companheiros de luta em nenhum momento.
O filme
A morte de Zé e, principalmente, as circunstâncias que levaram à sua prisão, são importantes para o enredo, porém o filme faz questão de mostrar o quanto suas ações em vida foram, não só significativas, mas em prol de um bem maior: combater a Ditadura de todas as formas. Cenas de Zé, interpretado pelo já conhecido e brilhante Caio Horowicz, vivendo na clandestinidade no Nordeste junto à Maria Madalena Prata Soares, sua esposa e companheira de luta, são boa parte dos 123 minutos de projeção. Com um som diegético (ou seja, o som que é ouvido pelas personagens), o filme te faz vivenciar quase na pele o que Zé e Madá passaram por boa parte de suas vidas. A tensão, o medo, a insegurança e a fome fazem parte da vida do casal até mesmo depois de Dorival, segundo filho de Madalena e único biológico de Zé, nascer. Há muito também sobre luta e propósito: por que depois de tanto tempo e com filhos, Zé ainda queria lutar? Por que ainda viver na clandestinidade? Todas essas e outras perguntas são respondidas. É gratificante notar como o filme faz questão de exaltar também Maria Madalena, a Madá, interpretada pela intrigante Eduarda Fernandes, que faz de Madá não só uma mulher forte e militante, mas uma mãe dedicada e delicada, que encontra nos filhos a força para continuar lutando. O filme ainda acha espaço para exaltar outros companheiros de luta, como Grauninha, interpretada por Samantha Jones. Samantha também imprime uma presença marcante em tela e é praticamente o fio de esperança em que Zé se agarra quando está em São Paulo.
Com atuações marcantes, um roteiro que, embora simples (já que apenas mostra pedaços da vida de Zé em sequência, com cortes secos) e um som diegético, o filme faz exatamente aquilo que se propõe. E se engana quem pensa que o propósito deste é apenas contar a história de José Carlos. O filme é quase uma intimidação aos espectadores, fazendo-os sair da sala com um sentimento de algo mal resolvido. E está. Os agentes da Ditadura Militar nunca de fato sofreram as consequências de suas terríveis ações cometidas durante os 21 anos de repressão. Ao colocar Caio Horowicz como Zé, ditando cartas escritas a seus pais em um plano médio diretamente olhando para a câmera, o diretor Rafael Conde nos convida a entrar na mente e na vida de Zé, nos colocando quase como um espectador daquela história no momento em que os fatos ocorreram. O que torna o plano final, com Zé já preso e ensanguentado nas dependências do DOI-CODI de Recife fazendo um apelo ao espectador, um soco no estômago.
O que estamos vivendo ainda em 2024 é a prova de que a Ditadura Militar no Brasil ainda nos traz consequências terríveis. Desde ex-Presidente exaltando torturadores da Ditadura abertamente no Senado, como fez Jair Bolsonaro em 2016, e depois novamente em diversas outras ocasiões, até mesmo histórias ainda não contadas de vítimas da repressão no país, o sentimento final que o filme me trouxe é de revolta em sua mais pura forma. É inadmissível que em pleno 2024 ainda não haja uma mobilização generalizada do Governo e da mídia, que divulgue e ecoe as histórias da Ditadura. Houve uma tentativa de punição com a Comissão Nacional da Verdade, fundado por Dilma Rousseff em 2011 (e extinto em 2014), e outros movimentos como “Ditadura Nunca Mais” da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, “Memórias da Ditadura” do Instituto Vladimir Herzog e até mesmo o “Memorial da Resistência” gerido pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura, mas nada disso foi o suficiente, já que essas histórias deveriam ser contadas abertamente e o assunto discutido constantemente em salas de aula, museus, por meio de palestras, debates públicos, jornais, filmes e etc. O filósofo irlandês Edmund Burke no século XIX escreveu: “Um povo que não conhece sua história, está fadado a repeti-la”, e é exatamente por isso que filmes, reportagens, livros, artigos, etc. sobre a Ditadura Militar no país devem ser cada vez mais propagados e divulgados. Escrevo esse texto no mesmo período em que Ainda Estou Aqui (2024), filme estrelado por Fernanda Torres ganha destaque internacional no Festival de Veneza, um filme que conta a história de Rubens Paiva e sua família. E, ainda assim, todos esses filmes não serão o suficiente, porque os horrores da Ditadura ainda permanecem, silenciosos ou não, no âmago do país.
É por isso que uma das cenas mais bonitas do longa fala sobre liberdade. “A gente vive pra ser livre” é uma das frases mais extraordinárias que eu já vi em um filme. É uma frase também que define muito do ideal de Zé. Ele respirava e vivia pela liberdade. Não só dele, mas de seus filhos, de sua companheira, de seus pais, de seus amigos e, por fim, do povo. “Zé”, ao mesmo tempo que destrincha a história de José Carlos e expõe a ferida aberta da Ditadura no país, é um ato de esperança e revolução. Honremos Zé e sua memória com esperança de construir um futuro melhor pro Brasil.
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Cineasta finalmente formada, nascida e criada em São Paulo, infelizmente. Quando empregada, atua como fotógrafa. Prefere maratonar séries do que dormir, cai muito fácil em provocações, mas tem o riso frouxo e gosta de abraços.