Raposa – Por que ninguém escuta seus gritos?

Por Lucas Hilário Gomes

Texto resultado da OFICINA DE CRÍTICA DE CINEMA PARA PESSOAS DISSIDENTES, COM ERIC MAGDA LIMA – MINISTRADA NA CASA AMARELA EUSÉLIO OLIVEIRA DURANTE O PERÍODO DE 18 DE JUNHO A 02 DE JULHO.


Raposa (2024) conta a história de um diarista gay chamado Lelé, que começa a trabalhar por indicação na casa de uma senhora de nome Dona Graça, em uma cidade no interior do Ceará. Lelé, em seu primeiro dia no novo local de trabalho, escuta gritos de mulher vindos da casa vizinha que chamam a sua atenção e despertam sua curiosidade. Dona Graça logo explica-lhe que tais gritos ocorrem diariamente e são decorrentes de um possível desequilíbrio mental daquela vizinha que vive só, órfã de mãe e pai, e que é conhecida como Raposa. Dona Graça diz já estar acostumada com o fenômeno, adverte-o a não se incomodar com aquilo e sim a cuidar dos seus serviços domésticos. 

No entanto, o estranhamento e a curiosidade de Lelé permanecem e levam-no a tentar se aproximar cada vez mais da vizinha misteriosa, seja nos momentos em que sua patroa não está por perto, entre os afazeres do serviço, seja em momentos de lazer e sociabilidade na praça da cidade, onde Raposa também aparece e observa o ensaio do grupo de dança do qual Lelé faz parte. O interesse de Lelé por Raposa para além do estereótipo, de ser uma mulher que tem acessos de gritos devido a um possível transtorno mental, pelo qual ela é conhecida, é a chave de desenvolvimento do enredo dessa história. 

Desse modo, a cada olhar e gesto do diarista em direção a Raposa somos instigados pelos questionamentos que parecem movê-lo: afinal, quem é essa mulher que vive só? Por que ela grita todos os dias e qual o motivo de seus gritos? O que acontece quando ela está gritando? Será que os gritos dela são realmente por causa de transtornos mentais? Será que ela tem amigos? Quem é a mulher que ele viu a visitar rápida e ocasionalmente? Por que Dona Graça parece de uma maneira suavemente implícita repreendê-lo quanto ao interesse dele em saber mais da vida da vizinha? São essas perguntas incorporadas e personificadas por Lelé que nos levam junto com ele, a ir conhecendo mais Raposa e a descobrir sobre sua vida, algo que explica muito mais do que os olhos e os ouvidos podem e querem ver e ouvir.

Com o passar dos minutos, sabemos a partir do processo de aproximação e amizade que ocorre entre Lelé e Raposa, que ela é uma pessoa com deficiência auditiva. Ficamos sabendo também pela boca de Dona Graça que a mulher que visita a vizinha de vez em quando é sua irmã. Contudo, a grande descoberta do trabalhador doméstico sobre Raposa, torna explícita a verdadeira causa dos gritos da mulher e declara a importância do tema do filme. 

A película realizada e dirigida por Margot Leitão, que também é atriz e atua como Raposa, e João Fontenele, também ator, roteirista desse curta e que faz o papel de Lelé, aborda um tema sério, importante e infelizmente ainda recorrente na sociedade: o estado de maior vulnerabilidade e exposição a violência das pessoas com deficiência, causado pelo abandono, seja da própria família seja da sociedade. A abordagem desse assunto e o modo como o fizeram os realizadores é um dos destaques positivos dessa obra cinematográfica. Isso porque esse tópico possibilita debates que abrangem não só a comunidade PCD como a própria comunidade LGBTQ+, assim como todas as pessoas que de alguma forma foram empurradas para a margem dos padrões da sociedade ocidental. O abandono, o impedimento ao acesso a direitos básicos ou a expulsão de casa pelos próprios familiares impelem para a vulnerabilidade as pessoas, sejam elas PCD’s, sejam LGBT’s, tornando-as mais suscetíveis a sofrer violências, que podem ser ainda mais agravadas pelos demais recortes por quais uma pessoa possa ser atravessada como classe, raça e gênero. 

Quando sabemos e entendemos (juntos com Lelé) a razão verdadeira dos gritos de Raposa, outras indagações, quase retóricas, podem surgir a respeito dos acontecimentos do filme: Por que ninguém escuta além dos gritos diários de Raposa? Será que realmente não escutam ou só fingem que ouvem? Será que os demais moradores daquela cidade nunca tiveram curiosidade, assim como Lelé, de saber se aqueles gritos eram realmente por conta de um desequilíbrio mental? Será que só Lelé poderia descobrir o que descobriu? E se não descobrisse? Talvez essas perguntas, não possuam respostas totalmente afirmativas para todos os que ali tinham conhecimento da existência de Raposa e de seus gritos, mas dizem e denunciam de uma provável indiferença em relação a vida daquela mulher baseada em um conhecimento que pode até ser verossímil, como no caso de Dona Graça, que até parece demonstrar conhecer bem a história de Raposa, mas que não consegue ou não tem interesse de enxergar além das aparências superficiais. A invisibilização e a indiferença, consciente e consentida, que pousam sobre Raposa, da verdadeira causa dos gritos pelos quais é conhecida, é também a que muitas mulheres, pessoas negras, LGBT+’S e PCD’S passam ou já passaram em diversos momentos da História. 

Mas, é na contramão dessa indiferença que a amizade entre Lelé e Raposa se estabelece no filme, o que é legal de acompanhar. O interesse curioso, insistente e simpático de Lelé por Raposa a possibilitou dizer a ele, à sua maneira, sobre os seus gritos, em um movimento de confiança e de pedido de ajuda, mesmo que ele não entenda em um primeiro momento. A aproximação dele o fez ver e encarar com os próprios olhos a razão dos gritos de Raposa. Retratado no vídeo, esse encontro e laço de amizade, entre um gay afeminado e diarista e uma mulher PCD que sofre algum grau de abandono, é um local comum de força de corpos os quais, são ou foram vistos por muitos, como a alteridade diversa a ser colocada no canto ou eliminada da sociedade. 

Porém, aqui nessa ficção, o mais interessante de contemplar essa conexão é que a sua razão de ser não permanece no lugar da fragilidade e do sofrimento, mas torna-se potência de reação ante a indiferença e as violências sofridas por Raposa. Os acontecimentos dos últimos minutos selam e demonstram isso acerca da relação entre Lelé e Raposa. 

Assim, a obra filmada em Acaraú, Ceará, local onde possivelmente a história também acontece, apresenta bons pontos de reflexão sobre abandono e violência, mas também amizade, em uma narrativa que desloca corpos historicamente considerados vulneráveis ou vulnerabilizados para além do lugar da passividade, mostrando-os em modo de revide. E em Raposa isso é feito com boas atuações de elenco, descontraídas e fortes, com destaque para Margot Leitão que recebeu o prêmio de melhor atuação pelo júri do 18° Festival ForRainbow (2024), contando também com as performances de Marta Aurélia e Gustavo Lopes. O som e a trilha sonora também são pontos bons nesse curta cearense, ajudando a contar a história em seus momentos sérios e tensos assim como nos mais relaxados.


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