Tipos de Gentileza – Até onde nossas carências nos levam

Kinds of Kindness poster. Imagem: Searchlight Pictures/ Divulgação

Yorgos Lanthimos tem uma meta: ele quer deixar sua marca em Hollywood, sua própria identidade. Certamente, ele está prestes a conseguir isso (se é que já não o fez). Depois do premiado Pobres Criaturas (Poor Things, 2023), que venceu 4 Oscars, o diretor refaz sua parceria com Efthymis Filippou, com quem já trabalhou em 3 projetos, e traz mais um filme desses que nos faz sair da sala de cinema e ficar dias pensando sobre o que vimos: Tipos de Gentileza (Kinds of Kindness, 2024).

Dessa vez, Lanthimos abandona completamente suas sutilezas e deixa de lado a didática que o público de Hollywood tende a buscar quando assiste algum blockbuster. Tipos de Gentileza conta 3 histórias levemente interligadas, com os mesmos atores, mas com personagens absurdamente diferentes, complexos, estranhos e com mais camadas do que se pode imaginar.

Tudo isso em um filme com quase 3 horas de duração, mas que, sabiamente, dividido em três capítulos distintos, não se faz entediante. De fato, mal perceberíamos o tempo passando não fosse a inerente vontade de ir ao banheiro esvaziar a bexiga por causa do frio causado pelo condicionador de ar.

Kinds of Kindness. Imagem: Searchlight Pictures/ Divulgação

Kinds os Kindness: mais perguntas que respostas

Eu detestaria parecer pretencioso, jamais teria essa intenção. Mas é inegável que “Kinds of Kindness” não é um filme pra qualquer um. Só a sua duração já pode servir de espantalho para os menos dispostos. Acontece que, pelo visto, esse não é o tipo de filme que vai te reconfortar com um final feliz depois de uma reviravolta em que tudo dá certo no final. Nem sei se há um final, na verdade!

Na primeira história, acompanhamos Robert (Jesse Plemons) um homem cujo empregador (Willem Dafoe) tem domínio total de sua vida. O que inclui a hora que ele levanta, o que ele deve comer no café da manhã, a que horas vai fazer amor com sua esposa, qual livro e quantas páginas Robert deve ler, entre outras coisas.

Até o momento em que Robert decide que quer tomar as rédeas de sua vida e o acordo com seu empregador se desfaz. E esse ponto de virada faz nosso primeiro protagonista repensar o verdadeiro preço de sua liberdade. O que se sucede é uma sequência de acontecimentos estranhos que planta na cabeça do espectador a dúvida do que está sendo controlado e do que é atitude voluntária. O final é chocantemente surpreendente.

Não apenas dessa, mas das duas outras histórias que se seguem.

Kinds of Kindness. Imagem: Searchlight Pictures/ Divulgação

No limite da violência e do absurdo

Já na segunda história, acompanhamos Andrew (também Jesse Plemons), um policial que perdeu a esposa (Emma Stone) em um acidente e aguarda que ela retorne, resgatada pela equipe de socorro local. Quando isso acontece, Andrew percebe mudanças no comportamento da mulher e passa a se perguntar se a pessoa na sua casa é, de fato, sua esposa.

Desconfiado, o policial começa a exigir coisas absurdas de sua companheira, ao ponto de sugerir que ela mutile a si mesma. E, nesse lugar da nossa conversa, eu não posso dar detalhes do que acontece para não estragar a experiência de quem lê esse texto. Mas, posso afirmar com muita confiança que coisas muito absurdas vão fazer você se contorcer na cadeira enquanto assiste. Mesmo assim, o principal questionamento ainda é: será que Andrew está certo? E, mais uma vez, o final pode armar um nó no seu cérebro.

Por fim, no último ato, somos apresentados a Emily (Emma Stone), discípula de uma seita comandada por Omi (Willem Dafoe), e que está em busca de uma salvadora (uma mulher iluminada, capaz de trazer os mortos à vida). Emily abandonou quase completamente sua família para viver sua fé, fazendo visitas esporádicas e secretas ao seu marido e filha. E, bem, eu não vou julgar você por ter julgado Emily! Numa olhada mais superficial, é fácil colocá-la no lugar de irresponsável. Porém, posso garantir, ela teve suas próprias razões para sair de casa!

Assim como nas duas primeiras histórias, o final desta não decepciona: surpreendentemente chocante!

Kinds of Kindness. Imagem: Searchlight Pictures/ Divulgação

Levemente interligadas

Obviamente, nenhuma das histórias de Kinds of Kindness trata dos mesmos personagens. Seria difícil, inclusive, bater o martelo para dizer se elas se passam em um mesmo “universo”. Isso, não fosse por um único detalhe: R.M.F., o personagem interpretado por
Yorgos Stefanakos, ator que é amigo de longa data do diretor, com quem divide um nome quase idêntico.

R.M.F. aparece nas três histórias e dá título às três. Ele tem uma participação quase singela, mas de tremenda importância para as três fábulas, como se ligasse os acontecimentos estranhos de todos que acompanhamos. Impressionante, inclusive, como ele consegue fazer isso sem precisar dizer uma única palavra. Aliás, ele protagoniza uma cena pós crédito de suma importância para entendermos o nome do terceiro conto.

Não fosse por R.M.F., nenhum dos nossos personagens teria seu ponto de virada, o acontecimento que faz todas as histórias caminharem. Que pode dar sentido a elas, ou tiras delas toda noção de realidade que a gente tenta encontrar, numa angústia involuntária de entender com verossimilhança o que estamos vendo.

Kinds of Kindness. Imagem: Searchlight Pictures/ Divulgação

Assinatura

Yorgos Lanthimos imprime bem seu tipo de direção. Acredito que, nesse momento de sua carreira, é quase impossível assistir a um filme dele e não saber que é dele. Sua direção é peculiar e seus personagens sempre carregam uma sinceridade aflorada, sem filtros. Como se transformassem em discursos fáceis todas as coisas que a gente tem dificuldade de dizer por conta de nossa polidez e tato social.

Nos seus filmes, é muito fácil perceber como os personagens se sentem, pois eles dizem isso sem nenhuma firula, ainda que pareça algo muito absurdo.

Kinds of Kindness dá aquela arranhada no cérebro. É violento, sanguinolento, gore e não faz floreios. Mas, ao mesmo tempo, é delicado, profundo e cheio sutilezas. O filme trata das imperfeições humanas e de nossa carência exagerada, da busca por afeto e aceitação daquelas a quem amamos. Isso tudo sem deixar de lado a noção de propósito, da procura existencial, do desejo de se enxergar como alguém importante, protagonista de nossas próprias histórias.

E, certamente, este é apenas um ponto de vista! Apenas uma leitura possível das muitas que o filme pode arrancar do público. A única certeza, de fato, é que você não vai ter suas ansiedades sanadas. Na verdade, vai perceber que tem muito mais perguntas a serem respondidas do que imaginava. O filme estreia no Brasil dia 22 de agosto. No elenco, além de Emma Stone, Willem Dafoe e Jesse Plemons, ainda temos Margaret Qualley, Hong Chau e Mamoudou Athie.


VEJA TAMBÉM

Pobres Criaturas – Até onde um desejo pode levar alguém

Guerra Civil – No limite da ética jornalística