Guerra Civil – No limite da ética jornalística

Wagner Moura e Kirsten Dunst protagonizam Guerra Civil. Imagem: A24/ Divulgação

Fundada em 2012, a A24 vem se tornando um estúdio conhecido por produzir filmes, digamos, fora da curva. Nem sempre a empresa acerta, mas, dessa vez, o tiro foi dado com precisão. Guerra Civil (Civil War – 2024), dirigido por Alex Garland, chega aos cinemas brasileiros dia 18 de abril, tendo estreado nos EUA uma semana antes, onde foi líder de bilheteria na ocasião.

A trama acompanha os jornalistas Lee e Joel, respectivamente Kirsten Dunst, nossa eterna Mary Jane de Homem-Aranha (Spider Man, 2002) e Wagner Moura, conhecido (e também eternizado) pelo controverso papel do Capitão Nascimento, de Tropa de Elite (2007). A dupla tenta cruzar uma parte do território norte-americano para conseguir uma entrevista exclusiva com o presidente. A expectativa é que o líder do país faça declarações a respeito da guerra civil que dá nome ao filme e assola o território estadunidense.

Como acompanhantes, ainda contamos com as presenças de Sammy (Stephen McKinley Henderson), um experiente, idoso e já debilitado jornalista; e de Jessie (Cailee Spaeny), que é um contraponto a Sammy, sendo uma jovem e entusiasmada fotojornalista.

No caminho, o grupo se depara com os horrores da guerra na nação americana: escassez de comida, de água, embates da população com a polícia e, claro, os conflitos entre grupos de lados rivais. Além do poder bélico que sempre acompanha esse tipo de confronto: muitas balas, bombas, assassinatos, cadáveres e cidades desoladas e semidestruídas.

Wagner Moura e Cailee Spaeny protagonizam cena tensa em Guerra Civil. Imagem: A24/ Divulgação

É um filme sobre guerra, mas não um filme “de guerra”

Apesar de possuir um título auto descritivo, existe uma pegadinha no nome escolhido para “Guerra Civil”. É possível que o expectador vá ao cinema esperando encontrar um filme nos moldes de O Resgate do Soldado Rian (Saving Private Rian, 1998), ou Nada de Novo no Front (Im Westen Nichts Neues, 2022). Mas, o fato é que Alex Garland traz outra perspectiva. Ele não escolheu contar a história da guerra em si. Não somos guiados pelo confronto, suas causas ou como ele termina.

Nossa visão é de alguém que está “dentro” do cenário de guerra. Dos profissionais que atuam nesses momentos de crise, trabalhando para conseguir informações e imagens que julgam relevantes para as pessoas que precisam saber “o quê”, “onde” e “como” tudo está acontecendo. E, nesse ponto, na minha opinião, Garland foi certeiro.

Com uma ambientação perfeita, o filme tem um clima pesado, tenso e preenchido por uma sensação de receio desde quando começa até no seu último momento. O quarteto que acompanhamos no filme forma um time propositalmente diverso, trazendo, pra quem assiste, visões diferentes da mesma situação. Trafegamos entre a prudência e mais alta empolgação. Vamos do calejado fazer profissional, que nos tira o brilho dos olhos para situações que já não parecem mais nos chocar, até a imprudência de quem, por ser jovem, acredita ser imortal.

Obviamente, impossível passar em branco pela participação de Jesse Plemons, que protagoniza uma das cenas mais tensas que eu já vi em qualquer filme na vida. Um daqueles momentos em que você aperta o braço da poltrona do cinema sem saber o que vem a seguir e torcendo para que tudo acabe bem. Uma sensação que se potencializa quando pensamos ser um episódio que acontece fidedignamente na realidade – e com mais frequência do que imaginamos.

Jesse Plemons em uma das melhores cenas já feitas para o cinema. Imagem: A24/ Divulgação

A importância do som em Guerra Civil

Algo mais que um detalhe nas escolhas da direção, é a importância que foi dada aos efeitos sonoros de Guerra Civil. Não que o som não seja importante para qualquer filme. Mas, aqui, tal qual em Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023), o som é quase um personagem por si. E é tão importante para a imersão no filme quanto os atores e suas camadas.

Mesmo não sendo um thriller de terror, não recomendo que você vá à sala de cinema se tiver um coração sensível, pois você certamente vai saltar na cadeira a cada 10 minutos. Os estampidos de tiros e os estrondos de bombas são ensurdecedores, principalmente nos momentos em que a equipe jornalística está entranhada nas operações militares ou nos confrontos entre os grupos civis.

Mais endurecedor ainda são os momentos de silêncio e os gritos mudos nas ocasiões comoventes e nas de estresse. Em meio a tantos barulhos de explosões e helicópteros, chega a ser fascinante como o silêncio é usado e muito, mas muito bem aproveitado. É difícil, pra alguém como eu, atentar para esse tipo apelo, uma vez que minha expertise não passa pelas especificações técnicas de cinema. Porém, esse é um “detalhe” que não vai passar despercebido até pra quem acredita que não liga pra esse tipo de aspecto.

A minha recomendação é que, se você puder, tente assistir em iMax, justamente para poder aproveitar a maior qualidade possível da parte sonora.

O grito "surdo" de Joel em Guerra Civil. Imagem: A24/ Divulgação

O difícil trabalho do jornalista

É óbvio que sempre vão existir, e com razão, muitas maneiras de se entender e ser afetado por uma obra. Em mim, Guerra Civil bateu certinho com minha formação: a de jornalista. Foi impossível acompanhar a história sem me ver naqueles papéis ou sem lembrar das aulas na universidade, onde a gente aprendia sobre o fazer jornalístico e os limites da profissão.

Claro, seria um exagero eu me ver como repórter de campo, coisa que nunca fui. Mas os diálogos, os entendimentos, as metas… Todas essas linguagens que configuram o trabalho que um jornalista precisa fazer, seja ele dentro do estúdio, da redação ou nas ruas, em contato com a população e coletando informações para contar uma boa história.

Ou, para além disso: entender a importância do jornalismo na cobertura dos fatos para levar essa informação à população, por mais que, para isso, coloquemos nossas vidas em risco. Algumas vezes, contra nossa vontade, com medo de não conseguir voltar pra casa. Outras vezes, se oferecendo para o serviço, contando, justamente, com esse risco previsto, com a emoção da cobertura e, talvez, com os frutos que se possa colher ao final do trabalho realizado.

Fato é que, em Guerra Civil, fica claro para o expectador os perigos que fazem parte dessa profissão que tem andado tão desvalorizada por uma parte da população. Seja essa parte a que prefere se informar apenas por veículos que dizem somente o que se quer ouvir; seja a parte decepcionada com a parcela da imprensa que se vendeu às ideias do capitalismo que a blinda e garante que ela ocupe o lugar onde está.

Filma retrata os perigos do fazer jornalístico. Imagem: A24/ Divulgação

Registro ou sensacionalismo

Uma das cadeiras que mais me chamou atenção na graduação foi a de Ética Jornalística. A gente trabalhava em sala certas nuances da profissão. Das mais óbvias, como as que observamos em programas policialescos, que entrevistam mães que choram sobre os cadáveres de seus filhos, mortos em operações policiais. Até as mais sutis, como os ângulos de fotos que desfavorecem a imagem de alguém.

Lembram da capa da “Isto É” em que a ex-presidente Dilma aparecia gritando? Na legenda, líamos: “As explosões nervosas da presidente”. Mas, a foto foi tirada durante uma partida de futebol na copa. A expressão de Dilma não era de descontrole, como dava a entender a revista, mas de empolgação pelo jogo da seleção. Era sobre isso. Mas, não apenas!

É difícil separar a ética da espetacularização quando acompanhamos momentos críticos. Como a foto do garoto desnutrido sendo observado por aves de rapina, aguardando sua morte para comê-lo. Até onde deve intervir o jornalista? Ele deveria ajudar a criança ao invés de fazer o registro de sua situação estarrecedora?

Guerra Civil conversa sobre esse assunto como nunca conseguimos fazer dentro de sala. A batalha para conseguir fotos perfeitas, premiadas futuramente. Ou que devam capturar o espírito daquele momento único, que dura uma fração de segundo, para o leitor. Além dos riscos que corre o profissional!

Lembro aqui da âncora de um jornal palestino, que escutou, aos prantos, ao vivo, o desabafo do repórter Samal Al Bashir. Na ocasião, o jornalista cobria a morte do colega Mohammed Abu Hatab, que havia feito matéria no mesmo local onde estava Bashir: a porta de um pronto socorro na Palestina.

Chorando enquanto tirava o colete, Bashir declarou: “Nós vamos todos morrer aqui, é só uma questão de tempo. Não aguento mais! Estamos exaustos, somos vítimas! Somos mortos um após o outro e ninguém se preocupa com a magnitude da catástrofe ou com o crime que sofremos em Gaza.”

Vale ressaltar que, até março deste ano, pelo menos 103 jornalistas foram mortos em Gaza por ataques Israelenses. Em cinco meses de guerra, profissionais da imprensa perderam suas vidas na tentativa de levar informação. As mortes aconteceram nos mais variados locais: em suas casas, nos campos de refugiados, nos seus escritórios,  em frentes aos hospitais, em seus carros e, é claro, em campo. Um dado que, talvez, você deva levar em conta quando for se questionar qual o papel da imprensa e das instituições de notícias.


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