Janaína Overdrive – A coragem de criar para si um corpo sem órgãos

Por Ruan Nascimento

Texto resultado da OFICINA DE CRÍTICA DE CINEMA PARA PESSOAS DISSIDENTES, COM ERIC MAGDA LIMA – MINISTRADA NA CASA AMARELA EUSÉLIO OLIVEIRA DURANTE O PERÍODO DE 18 DE JUNHO A 02 DE JULHO.


Como a ficção científica pode conservar a sua vitalidade quando, cada vez mais, a própria realidade ocorre como uma incessante trama de ficção científica? Seria necessário abandonar a tradição e criar um futurismo novo, que seja tão extremo que o presente não possa mais alcançá-lo? Talvez não. A ficção científica é, mais que uma representação fictícia do amanhã, um comentário sobre o hoje. É aí que está a sua força: controlar o presente é controlar o futuro, ou ao menos a forma que ele é imaginado. Na medida em que novas perspectivas sobre o agora ganham o poder de fala, elas projetam novas imaginações sobre o porvir. O curta Janaína Overdrive (2016), dirigido pelo cearense Mozart Freire, parece representar uma dessas perspectivas possíveis.  

O filme conta a história de Janaína (Layla Kayã Sah), uma transciborgue sexual modelo T1000, que tem sua existência ameaçada quando a Corporação decide reciclá-la e substituí-la por inovadores modelos high-tech. Ao invés de aceitar o seu fim, ela luta pela sobrevivência ao buscar um terminal pirata que a permita fazer upload da sua mente para o plano virtual e, assim, impedir que tenham controle sobre ela. Ao longo de sua fuga, ela passa por diversos ambientes e personagens que combinam avanço científico e decadência social, imaginação de uma Fortaleza (ainda mais) distópica, enquanto é perseguida pelos executivos-clone da Corporação. 

Por vezes o futuro de Janaína Overdrive parece se passar no passado, no futuro imaginado pelo passado. Mozart Freire não esquece da tradição cinematográfica, e muito menos conforma-se passivamente a ela: ele a confronta. Ele assimila ferozmente o imaginário cyberpunk dos anos 80 e 90 e o desconstrói, recontando, sob um outro ponto de vista, o enredo que vem sendo contado há tanto tempo. Nas palavras do próprio diretor: “Fazer cinema queer no Nordeste do Brasil é ser atrevido, é buscar outras histórias que não possuam uma narrativa heteronormativa. É colocar em questão uma sociedade e um público conservador. É alargar as possibilidades de diferentes relações entre corpos e afetos no cinema”. 

O curta-metragem toma um acervo de referências clássicas da ficção científica e do cinema queer e as transporta a ambientações propriamente cearenses: o resultado é uma composição estética que, apesar de alimentar-se fartamente de clichês de ambos os gêneros, permanece única e marcante — em que outra obra se pode ver ciborgues deitados em redes? Predominam visuais lotados de luzes, cores e visuais exagerados que podem ser, sem nenhum receio, chamados de Camp. Aqui, o Camp parece assumir a função de representar e glorificar o que é postiço e antinatural. Afinal, é precisamente nesses limites borrados entre o natural e o artificial, o orgânico e o sintético, o puro e o impuro, que o corpo queer encontra seu espaço para ser: a modificação corporal assume um sentido de libertação. 

Janaína Overdrive é, ainda, uma excelente abordagem dos mecanismos de dominação do capitalismo tardio. A Corporação manifesta-se como uma ideia mencionada apenas vagamente, como uma superestrutura de comando nebulosa e de origem inacessível. Nela, permite-se que existam seres dissidentes, mas apenas enquanto eles atendem às necessidades do capital. A vida é inseparável de uma lógica de mercado, em que todos são simultaneamente consumidores e produtos. O corpo de Janaína encaixa-se na lógica industrial ao ser uma máquina de produção de desejos para a subjugação dos demais corpos. Assim que não é mais produtiva, ela pode ser eliminada, ou melhor, reciclada — pois nenhum pedaço de carne é desperdiçado pelo abatedouro. 

Ao invés de se permitir ser assimilada pelo sistema, ter seu hardware reciclado em um novo modelo que seja socialmente aceito, Janaína desfruta de sua condição marginal e usa a imagem que foi criada dela a seu favor: ao não ser mais reconhecida como produtiva, ela abraça a sua própria presença enquanto símbolo da antiprodução. Como uma femme fatale de um film noir clássico, a ciborgue por vezes usa de sua potência sexual para alcançar os seus interesses, jogando com o sistema para destruí-lo de dentro para fora. Mas, apesar de reconhecer as maneiras que a técnica a controla, ela não tenta escapar da tecnologia. Ela reconhece que tal tentativa seria inútil, pois não há mais realidade restante senão a tecnológica: ela é tecnologia.

Talvez o caminho para a liberdade seja reivindicar — tomar de assalto — os meios técnicos para si, e permitir que eles a transformem para além de qualquer autoridade. A “bonequinha de carne” não tem medo de renunciar ao seu aparelho físico original, ela está disposta a explorar outras formas possíveis de ser, a aniquilar todas as pré-configurações biológicas e tecnológicas, a arrancar de si todos os órgãos que a controlam e construir para si um diferente tipo de corpo: dessa vez um corpo sem órgãos, tão livre quanto possível. Durante uma discussão para conseguir acesso ao terminal pirata, a personagem grita: “Quem manda no meu cu e no meu sistema sou eu, porra!”. Janaína Overdrive é, no fim, um filme sobre a coragem de assumir o controle de seu próprio cu, e de seu próprio sistema.

Você pode assistir Janaína Overdrive aqui.


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