A narrativa sensorial de Janaína Overdrive

 

Fazer cinema no Brasil é praticamente um ato político. O mercado é difícil, o investimento é precário e, além dos problemas estruturais, os realizadores também encontram como obstáculo o espectador brasileiro que, em sua grande maioria, olha com desconfiança para a produção nacional. Quem nunca ouviu alguém falar (ou quem sabe até já falou) que não gosta de cinema brasileiro porque só tem nudez e palavrão?
Se as dificuldades já são muitas a nível de país, fazer cinema no Ceará, mais especificamente na capital do estado, Fortaleza é de uma resistência hercúlea.
E todas essas barreiras se elevam um pouco mais quando o cinema é de (ou flerta com) gênero, nesse caso o gênero é ficção científica, a criatividade e a competência precisam compensar o baixo orçamento. E é exatamente dessa maneira que Janaína Overdrive nos teletransporta para um ambiente cyberpunk de muito suspense. Janaína é uma cyborg de prostituição modelo T1000 sem perspectivas, a Corporação (destaco aqui o quanto essa palavra nos remete à corpo) quer substituí-la por modelos mais atualizados. O tempo de Janaína passou. A efemeridade dos corpos, das relações, da vida propriamente dita, existe assunto mais atemporal?

 

O curta realizado como conclusão do curso técnico de Audiovisual pela Escola Pública de Audiovisual da Vila das Artes, dirigido por Mozart Freire, nos leva por um clima de tensão bem construído pelas escolhas estéticas e pela trilha sonora bem pontuada. A montagem rápida, a iluminação marcada, somada aos planos mais abertos de câmera parada evidenciam os locais, caprichosamente enquadrados, pelos quais passa sua protagonista, em cada plano nota-se a mão pesada e marcante da direção de arte, o conceito dos personagens e dos cenários é inteligente e interessante e poderiam ser, facilmente, ilustrados em detalhes num material extra, talvez um livro de concept art. Eu compraria.

 

 

Mas, “Janaína” não é só explosão visual. É também explosão de referências e influências. No texto, no que é visto e no que é ouvido também. Jogos, literatura e o próprio cinema de ficção científica e cyberpunk montam a colcha de retalhos que é a bagagem cultural que o curta-metragem representa tão bem, começando pelo título, homenagem ao livro Mona-lisa Overdrive, de William Gibson. Além de toda atmosfera futurista, o curta também usa esse clima como plano de fundo para brincar com questões de gênero e sexualidade, a própria protagonista, apesar de ser colocada numa posição de prostituição, ajuda a quebrar o padrão da ficção científica em todas as mídias que geralmente é uma grande aventura de garoto branco cis hétero feita para garoto branco cis hétero.

Um instigante diálogo entre o cinema clássico e a experimentação Janaína Overdrive é apenas um curta de 20 minutos, mas carrega consigo tanta potência e tanto significado que fica impossível ignorá-lo. É um representante incrível do cinema cearense, exemplo de outros protagonismos, representatividades, corpos, relações e cinemas possíveis.