Desde o início do audiovisual, há uma fascinação com as possibilidades de se transmitir visualmente uma história através da composição do que há em quadro, a mise en scène, o que, por exemplo, fez com que Viagem À Lua (Le Voyage Dans La Lune, 1902) ficasse imortalizado no imaginário cinéfilo mesmo depois de mais de um século. Tal imortalidade foi conquistada, entre outras coisas, pelo trabalho meticuloso e árduo de se criar uma nova realidade através de efeitos práticos. Nas últimas décadas, novos horizontes foram abertos com a tecnologia, mas ainda existe magia na construção de mundos, narrativas e personagens através da criação de cenários, figurinos e demais escolhas de direção de arte. Ao assistir Kila & Mauna, fui sequestrado emocionalmente durante a trajetória que explora a amizade entre duas pessoas diferentes em um mundo encantador, imersivo e, de certa forma, ameaçador. Com luzes coloridas, figurinos únicos e dispositivos atípicos, o curta-metragem nos leva a conhecer uma história de companheirismo, luto e autodescoberta.
A viagem de Kila e Mauna, amigas com ressentimentos mútuos, vai de encontro às narrativas do gênero road movie, que aproxima as duas protagonistas enquanto as obriga a encarar seus próprios defeitos numa trajetória intensa. Para construir essa história, não faltou ousadia por parte do roteiro de Ella Monstra, também responsável pela direção do projeto, e Nolí Levi, também responsável pela direção de arte, já que a temática do mundo envolto das protagonistas carrega referências futuristas e pós-apocalípticas claras e importantes para a narrativa. Esse passo arriscado na personificação do que compõe o cenário foi bem sucedido em transmitir os receios de embarcar na missão de encontrar Triz, a amiga desaparecida de Kila e Mauna, visto que, junto com a direção de fotografia e outros efeitos especiais, todos os elementos selecionados pela arte transformam paisagens limitadas em espaços que transmitem incertezas e solidão.
Para uma maior convergência harmônica do mundo fílmico, no que diz respeito à fotografia, há nitidamente um bom trabalho de composição de quadro junto da iluminação para aproveitar ao máximo cenários, objetos de cena e os figurinos excêntricos. É encantadora a capacidade que foi sabiamente explorada para se apropriar de uma locação e de demais elementos físicos para tornar o espaço dividido pelas atrizes Muriel Cruz (Kila) e Romã (Mauna) numa realidade alternativa dominada pelos sentimentos , sejam eles bons ou ruins. Já no que abrange as escolhas narrativas que explicitam o desenvolvimento emocional das protagonistas, é interessante observar que a captação de filmagens, que inicialmente aparenta ser aleatória à narrativa principal, é usada para a transmissão de atuações que se aproximam do ensaístico. Ao mesmo tempo que entendemos a posição da amiga desaparecida do antigo trio, é demonstrado que há um contraste entre o contato pacífico de Kila e Mauna no passado, nas filmagens, e atualmente. Agora a relação se mostra cheia de ressentimento, dor e luto, decorrente da falta que ambas têm da sua antiga relação, entre si e com Triz.
No fim, mesmo que sem muitas respostas concretas, Kila & Mauna demonstra como o percurso até um determinado ponto pode ser mais interessante e encantador do que o próprio desfecho. Assim como um road movie, a direção encontra sua própria forma, colorida e etérea, de trazer os conflitos internos de suas personagens enquanto as obriga a trilhar um caminho que é tão complexo quanto o autoconhecimento, além de nos deslumbrar com paisagens que são intrínsecas à identidade visual pertencente a mise en scène. Como consequência, a pergunta “onde está Triz?” que nos acompanha durante os quase 20 minutos de viagem, não é como um alarme, urgente e inquietante, mas sim como um luto, silencioso e permanente. Ao fim da jornada, sabemos que Kila e Mauna já não são as mesmas que conhecemos no começo do curta, muito menos são as mesmas que foram capturadas nas gravações digitais de Triz: elas são os resultados de tudo que viram, sentiram e souberam.
Mauro Salu
Estudante de Cinema e Audiovisual com amor infinito em mundos fictícios e suas ramificações e na arquitetura da psiquê de personagens odiados (tipo a Abby de The Last of Us). Sonha em viver em uma realidade em que o nosso país vai investir pesado nos curtas e longas de animação para que haja uma diversidade de técnicas, gêneros e narrativas que só o Brasil é capaz de ter. Sempre disposto a falar por horas e horas sobre a qualidade duvidosa de franquias longas, desde Pânico até Raízes do Sertão.
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