“O que acontece quando o lugar seguro se torna ruína?” Esse é o questionamento que nos guia pelo denso e delicado curta-metragem Jaci (2023), onde sua protagonista, homônima à obra, trilha um caminho pela penumbra, no limiar entre a tensão e a ternura. Durante a narrativa, que se passa dentro da casa e dentro da mente da protagonista, artesã e artista plástica, podemos contemplar um eclipse entre o que é real e o que é fantástico, ou, entre a constante transição do que Jaci é e de quem ela se torna. Com seu lar em situação precária, e com uma situação de trabalho igualmente sufocante, é na genialidade de sua obra, uma casa em miniatura, que a mulher se apoia. No entanto, quando a mudança se torna inevitável, Jaci percebe que está para além de seu trabalho e tem sua mente invadida pela luz em forma de pessoa, alguém que se torna o primeiro lugar em que Jaci pode se apoiar e se sentir acolhida.
Em Jaci há um trabalho exímio na caracterização da casa, e mente, em ruínas da sua protagonista, desde a performance de Yasmin Salvador, até os simbolismos envolvendo a semiótica da lua que se espelham na iluminação, sonorização e demais elementos que compõem a arte. Isso resulta em tensão, mimetizando e transmitindo com eficácia a dor de se transformar e mudar que Jaci está passando, e ternura, onde se encontra a conclusão da história da artesã. Em conjunto com as atuações e as escolhas feitas pela direção de arte, há uma harmonia encantadora no trabalho feito pela iluminação e pela trilha sonora que são pontuais e complementares na missão de encerrar o ciclo da protagonista, sabendo o que mostrar e o que esconder nos momentos certos. Ao fim, após Jaci se entregar à mudança, a conclusão que ela encontra é de que quando o lugar seguro se torna ruína, sempre há a esperança de encontrar um novo lar após a transformação.
Por fim, mas igualmente importante, o curta-metragem exalta a figura do corpo trans em suas potências, com suas performances na atuação, e em suas dores, como subtexto dentro da narrativa que, após traçar uma trajetória de auto zelo em meio ao caos, encontra a tranquilidade no abraço de outra pessoa trans. Além disso, o trabalho feito na direção e no roteiro feito por Bruno La Loba converge as tramas vividas por Jaci para a paz e equilíbrio, apesar do caminho sombrio que sua protagonista se encontra. A trajetória do curta de Bruno é, entre outras coisas, uma escolha política, visto que é um contraste com histórias populares que narram trajetórias com finais trágicos de pessoas trans no meio do audiovisual. Contraste esse que é alcançado pela presença de profissionais pertencentes à comunidade trans, e pela comunidade LGBTQIAPN+ no geral, na equipe técnica, equipe criativa e no elenco. Jaci é, para além de ótima obra, uma trabalho sucinto e metódico que inspira, e expira, a capacidade que nós, como comunidade, temos para contar nossas próprias histórias.
Mauro Salu
Estudante de Cinema e Audiovisual com amor infinito em mundos fictícios e suas ramificações e na arquitetura da psiquê de personagens odiados (tipo a Abby de The Last of Us). Sonha em viver em uma realidade em que o nosso país vai investir pesado nos curtas e longas de animação para que haja uma diversidade de técnicas, gêneros e narrativas que só o Brasil é capaz de ter. Sempre disposto a falar por horas e horas sobre a qualidade duvidosa de franquias longas, desde Pânico até Raízes do Sertão.
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