Não há espaço para o feio em Saltburn, os figurinos provam isso

Figurinos são fundamentais na construção de enredos e personagens desde que o cinema é cinema, principalmente quando, através das roupas, a trama nas telas pode muito bem ganhar novos contornos e interpretações, para além de destacar na posteridade um ícone visual. Desde o expressionista alemão Metrópolis (Metropoles, 1927), com figurinos assinados por Aenne Willkomm, que até hoje rende muitas réplicas para a cultura pop da versão robótica de Maria, até Edith Head com seu conjunto de festa preto e branco com saia em chiffon de Lisa Carol Freemont personagem de Grace Kelly para Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) e o sedutor remake O Grande Gatsby (The Great Gatsby, 2013) com figurinos assinados por ninguém menos que Miuccia Prada e coordenados por Catherine Martin premiada por Moulin Rouge – Amor em Vermelho (Moulin Rouge!, 2001) e Romeu + Julieta (Romeo + Juliet, 1996).

Saltburn (2023), de Emerald Fennell, com coordenação de figurinos assinada por Sophie Canale, é um desses filmes onde o figurino atravessa a trama de maneira muito complementar, cada personagem veste o que veste por um motivo e cada peça usada durante toda cena parece conversar com as cenas por vezes até mais do que um diálogo, muitas das vezes sem necessariamente haver esse diálogo e os figurinos de Saltburn provam isso por A+B.

O filme, ambientado nos primeiros anos pós virada do milênio, acompanha inicialmente a narrativa de Felix Catton (Jacob Elordi) e Oliver Quick (Barry Keoghan) na Universidade de Oxford, ambos de origens sociais bem discrepantes, mas que desperta em Oliver o desejo de pertencer ao círculo de Felix, onde tudo parece ser mais bonito, mais vivo e vivido de maneira mais visceral, sob a constante companhia de um visual meio indie sleazy, onde a turma de Felix se diverte em meio a camisas de algodão com slogans e frases de efeito, pulseiras da amizade, sutiãs de cores acesas e que parecem saltar de camisas em malha.

Essas peças somadas a inevitáveis moletons de tricô, jeans básicos, camisas gola polo Ralph Lauren e os quase inseparáveis cigarros entre os dedos, lembram muito a jovem realeza britânica nessa mesma época quando Harry e William eram capas de tabloides de fofoca colocando a coroa inglesa em algumas saias justas (saias essas, físicas e morais, também muito presentes no cotidiano da Oxford de Saltburn). Esse visual, inclusive, em muito suscitou as discussões sobre o que seria a tendência problemática da estética old money, onde há implícita a ideia de não ostentar um look caro, mesmo sabendo que aquele look é caro, a estética ganha esse nome por ser associada ao estilo de vida de herdeiros de antigas fortunas e se baseia em peças elegantes, clássicas e dentro de uma pegada minimalista normalmente rejeitando monogramas aparentes e ostensivos.

Em contraponto à riqueza implícita do guarda-roupas de Felix Catton temos as peças de Oliver Quick, essas sim muito modestas e que fazem jus a sua origem simples ao ponto dele não ter um conjunto de terno para ocasiões mais formais, em uma cena do filme, o primo de Felix, Farleigh (Archie Madekwe), em tom de desdém, observa que as mangas do terno de Oliver não estão ajustadas, associando esse fato à peça ser alugada e não de sua propriedade.

Saltburn é muito sobre a ideia de pertencimento e os limites éticos e morais (ou a falta deles) que existem para que esse sentimento de fato seja uma realidade, é sobre o desejo de estar, de pertencer e de alguma maneira ser algo em algum lugar, e o que se veste é parte desse processo social, dessa emulação. Para além do estilo de vida dos Catton no castelo onde Felix e Oliver passam a maior parte do filme os figurinos vão contornando todos os sentimentos que se envolvem tanto por Felix e Oliver como pela irmã de Felix, Venetia (Alison Oliver) como também por Elspeth Catton, interpretada incrivelmente por Rosamund Pike, e também pela pobre e querida Pamela, uma curiosíssima aparição de Carey Mulligan usando alta costura Chanel e Alexander McQueen.

O ponto alto dos figurinos do filme, sem dúvida alguma, fica por conta da festa de aniversário de Oliver onde, de acordo com o andar da carruagem e das mentiras de Oliver, podemos observar desde a despreocupação de Felix em compor uma fantasia, onde sua produção se reduz a uma regata branca, jeans e um par de asas douradas numa clara referência a Julieta de Claire Danes em Romeu + Julieta, até a máxima produção de Elspeth, mãe de Felix, e Venetia, uma modelo muito famosa nos anos 90 que evocando uma Titânia, a rainha das fadas, lança mão de alta costura Valentino.

Os dois vestidos Valentino couture usados por Elspeth no filme são da coleção de outono 2018,  o da festa em questão, quase que completamente coberto de folhas em uma série de brocados num dourado não muito reluzente, mas brilhante o suficiente para tornar os poucos minutos de tela de Elspeth usando a peça um dos mais deliciosos de se ver em Saltburn, digno inclusive da coleção que à época foi muito bem recebida pela crítica especializada e um dos marcos na alta costura da Valentino sob a gestão de Pierpaolo Piccioli.

Há muito o que se ver e destrinchar nos figurinos de Saltburn, todos eles são encantadores à sua maneira atendendo inclusive às inquietações de Elspeth pela sua aversão a coisas feias, desde os looks iniciais de Felix e Oliver em Oxford, com peças vintage Gucci, até a fatídica porém encantadora festa, desde a jaqueta de Oliver bordada com mariposas até o já citado Valentino couture de Elspeth esbarrando no curto vestido preto usado por Venetia Catton onde nas costas nuas do vestido há uma grande teia em correntes e cristais enquanto uma delicada e quase imperceptível aranha pende do meio dessa armação.

Nessa altura do filme já sabemos que há toda um emaranhado de narrativas individuais que ligam Oliver a todos em Saltburn e que no fim, Oliver (a aranha) devorou um por um as vítimas enroscadas em sua teia de mentiras, vaidades e manipulações buscando pelo seu sentido de ser e também de pertencer, talvez as coisas bonitas presentes em Saltburn, talvez…


Felipe Vasconcelos é consultor, pesquisador e criador de conteúdo de moda para sites e revistas especializadas.


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