São Paulo Food Film Festival 2023 – Arte refletindo a alimentação para além do ato de comer

O São Paulo Food Film Festival 2023 aconteceu nos dias 09 a 19 de novembro. Com produção de Doc & Outras Coisas e Química Cultural e realização do Ministério da CulturaDaniela Guariba e André Henrique Graziano dirigem este evento gratuito que cruza Gastronomia e Arte. Com uma curadoria riquíssima e explorando diferentes mídias e espaços de exibição, o festival contou com longas metragens de ficção, documentários, séries, ensaios fotográficos, aulas e debates. Acontecendo em formato híbrido, parte da programação esteve disponível virtualmente no serviço de streaming da Spcine, o Spcine Play e no canal do YouTube do evento. A Cinemateca Brasileira sediou a programação presencial. Filmes como O Poço (El Hoyo, 2019),  A Fantástica Fábrica de Chocolate (Willy Wonka & the Chocolate Factory, 1971), A Dama e o Vagabundo (Lady and the Tramp, 1955), A Princesa e o Sapo (The Princess and the Frog, 2009), Comer Beber Viver (Yin Shi Nan Nu, 1994) e Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al Borde de un Ataque de “Nervios”, 1988) e documentários como Volte Sempre (Come Back Anytime, 2021), Viciados em Pimenta (Chiliheads, Fous de Piments Forts, 2021), Os Catadores e Eu (Les Glaneurs et la Glaneuse, 2000), Em Busca da Estrela (Stella, 2022) foram acompanhados de deliciosas degustações de pratos relacionados às suas respectivas obras.

As obras de ficção selecionadas irão trazer (com exceção de O Poço que denuncia a cultura do desperdicio) um olhar afetivo, um olhar delicado e por vezes muito sutil sobre a comida. Por mais que, por exemplo, o enredo de A Dama e o Vagabundo não seja sobre alimentação, o momento mais marcante dele envolve a comida. É dividindo aquele prato de almôndegas que os personagens se conectam com mais profundidade e ainda protagonizam uma cena que ficou gravada na história da cultura pop. Tiana, protagonista de A Princesa e o Sapo, traz a comida de afeto que aprendeu com seu pai como combustível do seu sonho de abrir seu restaurante. O longa taiwanês Comer Beber Viver já trás a gastronomia mais presente em sua narrativa com uma delicadeza emocionante ao trazer uma família com dificuldade em se conectar, mas que encontram um momento de união à mesa. A escolha destas obras pode trazer no público o pensamento de como “se alimentar” vai muito além do simples ato de comer. É momento de partilha, é memória e ancestralidade. A alimentação, especialmente quando compartilhada, é um ato de carinho e cuidado em sua forma mais sincera. 

É perceptível que as obras foram selecionadas com muita atenção e cuidado, todas as obras se relacionam bem entre si, mesmo que por um pequeno detalhe e contribuem bastante com o tema central do festival. O único elo fraco do acervo foi apenas o filme Morango com Chocolate (Fresa y chocolate, 1993) que, apesar de ter um momento com uma comida que marca o encontro dos protagonistas, este momento não firma uma referência muito forte, logo ele não acrescenta muito a pauta proposta pelo evento, além de sua narrativa perpetuar estereótipos de gênero e sexualidade e reproduzir falas homofóbicas e racistas.

Os documentários trazem à tona discussões riquíssimas com enfoque histórico, político e social. She Chef (2023) expõe questões de gênero em uma indústria onde a misoginia e patriarcado ainda estão muito enraizados. O documentário acompanha Agnes Karrasch, uma jovem austríaca que se tornou a primeira e, infelizmente, a única mulher a ganhar a Copa do Mundo de Cozinha de 2018. Doce Mentira (De Vrais Mensonges, 2015) retrata os mecanismos midiáticos e estruturais adotados pelas indústrias para abafar os questionamentos sobre os malefícios do uso excessivo de açúcar, fazendo um trocadilho interessante em seu título original “Sugar Coated”. Big Food – O Poder das Indústrias de Ultraprocessados (2021) como o título já deixa explícito, trata da ameaça à saúde pública que são os ultraprocessados e o diálogo soturno entre as grandes empresas e os governantes públicos.

Big Food é uma das 10 obras documentais nacionais presentes no catálogo do festival. A presença dessas obras de muita qualidade é o maior êxito do festival. Distribuídas entre exibições presenciais e virtuais, esse acervo reflete a riqueza da nossa cultura alimentar, exaltando nossa bagagem histórica, mas também conta com documentários que denunciam dificuldades enfrentadas na luta para levar um alimento justo e limpo para a mesa dos brasileiros. Entre estas obras destaco a série História da Alimentação no Brasil, adaptada a partir do livro homônimo de Câmara Cascudo, dirigida por Eugenio Puppo em 2017, que viaja todo o Brasil contando com a participação de nomes da gastronomia e antropologia locais para debater os saberes escritos no livro de Câmara. Antes do Prato (2022), de Carol Quintanilha, discorre sobre agroecologia, alimentação na periferia e nas escolas, com foco no incentivo ao pensamento sobre a cadeia alimentar do que comemos. O documentário traz coletivos sociais, agricultores familiares e pesquisadores da alimentação que levantam a bandeira. Food, Funk & Favela (2023), de Cacau Rhoden, é emocionante e uma injeção de ânimo e esperança. As Cozinhas Solidárias da Gastromotiva são o foco desta obra cheia de vida que fala sobre comida, resistência e arte.

Além desses já citados, o festival foi palco da estreia de dois episódios da série Chefs do Brasil. A série conta com a direção de Luciano Oreggia e tem como inspiração o livro de fotografia “Chefs” de Paulo Vitale. Luciano e Paulo escolheram alguns dos nomes presentes no livro para esta série que disseca a figura de Chefs, contando suas histórias e trajetórias. O primeiro episódio exibido foi protagonizado pelo chef Eudes Assis e contou com um debate com os Luciano, Paulo e o cozinheiro Edson Leite que trouxe falas muito fortes e pertinentes sobre periferia, gastronomia e reconhecimento. O segundo traça um perfil sobre o chef Felipe Schaedler, com debate com Paulo, Luciano e o próprio Felipe. Ambos os debates contaram com mediação de Pedro Saad e trouxeram conversas ricas sobre descentralização. Algumas fotografias do livro Chefs compuseram a exposição de mesmo nome disponível na Cinemateca Brasileira durante o evento.

Os demais debates contaram com um forte protagonismo feminino, trazendo escritoras, especialistas, ativistas e pesquisadoras das mais diversas áreas para debater os temas Consumo de Ultraprocessados; Uso de Agrotóxicos; Educação Alimentar e Nutricional e Cozinhas Solidárias, tendo como base alguns filmes que iam de encontro com cada tema. Todos os debates aconteceram no canal oficial do festival no youtube, com excessão do último que ocorreu presencialmente na Cinemateca. As aulas presenciais ficaram a cargo de grandes chefs e pesquisadoras. Aline Guedes, Patty Durães, a líder indígena Jerá Guarani, Angelita Gonzaga e Graziela Tavares partilharam conhecimento e deliciosos pratos com o público. 

Assim, o São Paulo Food Festival encerra sua segunda edição com muita qualidade. Mostrando que gastronomia é arte, é cultura e é ferramenta de transformação social. Oferecendo ao público uma diversidade de conteúdos bem pensada e bem executada em um ambiente acolhedor que trouxe diversão, leveza e comida boa, mas também instigou pensamento crítico sobre o papel social da gastronomia no mundo.


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