O Assassino – O refinado cinema técnico de David Fincher

Um dos cineastas mais aclamados das últimas décadas se chama David Fincher. Um diretor que sabe trabalhar bem com personagens e entregar thrillers instigantes que deixam o expectador simplesmente hipnotizado. O cineasta, responsável por filmes como Seven: Os Sete Crimes Capitais (Se7en, 1995) e Zodíaco (Zodiac, 2007), é muito atento aos detalhes e procura diversificar sua filmografia sempre que pode. Ao vir para o streaming, Fincher foi a procura de liberdade para tocar seus projetos pessoais, o último foi Mank (2020), que se baseia num roteiro escrito pelo seu pai, mostrando a Hollywood na Era de Ouro, o longa foi bem recebido e teve dez indicações ao Oscar, vencendo em duas categorias.

Seu segundo longa pela Netflix chegou neste último final de semana na locadora vermelha cercado de expectativas. Após ser exibido em vários festivais e em algumas salas de cinema ao redor do mundo – inclusive no Brasil -, o longa O Assassino (The Killer, 2023) conta a história do personagem título que precisa correr contra a tempo para se vingar após sofrer um revés ao falhar em uma missão. 

O filme é baseado em uma HQ de mesmo nome, escrita por Alexis Nolent e Luc Jacamon, o roteiro fica a cargo de Andrew Kevin Walker, que traz uma trama bastante simples, com uma crescente bem linear, sem muitas reviravoltas, seguindo uma zona de conforto palpável, mas totalmente acessível, ao menos os poucos diálogos são excelentes e muito bem escritos.

Então o que faz de O Assassino um longa tão interessante? É aí que entra o fator “Fincher”. O diretor consegue, mesmo com um roteiro comum, trabalhar para que a narrativa se eleve para algo mais, conseguindo prender a atenção do seu público. Os primeiros 15 minutos vão determinar se você vai gostar ou não deste filme, pois é ali que Fincher constrói um estudo de personagem, nos colocando na perspectiva de uma pessoa fria, calculista e focada em ser bem sucedido em seu trabalho.

É a partir desta premissa que o filme ganha contornos surpreendentes, conseguindo ser um thriller extremamente metódico e surpreendentemente sensorial. A atmosfera criada por Fincher funciona tanto pela execução, milimetricamente bem pensada, quando pelos aspectos técnicos que transbordam em tela conseguindo causar uma imersão tremenda durante suas quase duas horas de duração.

A obra é pautada pela paciência. O ritmo, inicialmente lento, é proposital e sua posterior aceleração é correspondente a urgência do protagonista. Michael Fassbender foi a escolha perfeita para um personagem que transmite poucas emoções, mas consegue nos passar seus anseios através de uma narração em off que funciona como uma espécie de voz da consciência. O ator tem uma boa entrega aqui e posso dizer que o filme funciona bem porque existe um comprometimento em relação ao um personagem tão implacável.

É claro que o filme não é livre de problemas, afinal, ao seguir um caminho mais simplista, a sensação de estar vendo algo episódico é inevitável. É por isto que o fator “Fincher” é importante, para cada passo que o personagem dá, somos levados a lugares exóticos que atravessam Europa, América Central e América do Norte, onde cada mudança de ambiente leva o protagonista a se questionar mentalmente, em contraponto ao desejo de se vingar a qualquer custo.

A verdade é que O Assassino é um filme brutal e cru, a trilha sonora aparece em horas oportunas e ajuda a criar um clima de tensão, porém na maior parte do tempo a ausência dela consegue trazer uma sensação de perigo, bem como abre nos sentidos para outros sons ambientes que acabam fazendo parte da narrativa e também da construção do personagem, que é atento aos detalhes usando todos os métodos possíveis para ser bem sucedido na sua empreitada.

O longa consegue na maior parte do tempo funcionar como uma montanha-russa, que vai se intensificando até culminar na grande cena de ação do filme. A sequência da Flórida é uma aula de cinema, desde sua antecipação, passando pela luta brutal entre o personagem de Fassbender e seu alvo, mostrando que Fincher é um dos cineastas mais empolgantes da atualidade, toda a sequência mostra uma edição e mixagem de sons apuradas, com enquadramentos invasivos privilegiando a pancadaria mostrando o melhor do cinema técnico em exercício.

A maior qualidade de O Assassino, no entanto, é sua capacidade de funcionar tanto para streaming quanto para o cinema. Muito se questiona que há uma perda de qualidade quando filmes são feitos para streaming e aqui Fincher mostra que é possível casar os dois mundos em um resultado que fica muito explícito em tela. A fotografia sóbria e ao mesmo tempo deslumbrante de Erik Messerschmidt dá o tom cinematográfico que a obra precisa e cria um ambiente ainda mais sufocante e imprevisível.

Por ser focado basicamente num personagem central, o filme tem um elenco coadjuvante pequeno, mas que consegue causar boas impressões, a brasileira Sophie Charlotte tem uma participação importante, mas bastante rápida, o que pode decepcionar quem estava empolgado em ver seu nome nos créditos. O ator Charles Parnell também tem uma participação bastante rápida, mas quem realmente sabe aproveitar sua presença no filme é Tilda Swinton no papel da especialista, seu monólogo em determinado ponto do filme é um dos mais memoráveis do ano até o momento.

De uma forma geral, O Assassino é um grande filme, daqueles que vão ser dissecados aos mínimos detalhes por cinéfilos, talvez nem seja o melhor trabalho de David Fincher, porém com certeza está entre os filmes mais consistentes de sua carreira até o momento. A obra sabe se beneficiar dos seus aspectos técnicos e de uma direção primorosa que conduz um protagonista que funciona numa narrativa aparentemente simples, porém executada de forma eficiente pelo “método Fincher” que se antecipa em qualidade e não improvisa, executando tudo de uma forma primorosa. O cinema de qualidade agradece.


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