Barbie – Quando o feminismo for legalizado, filmes como esse serão comuns

Talvez seja desnecessário falar de Barbie (2023), novo filme de Greta Gerwig, como o fenômeno midiático e cultural que se tornou antes mesmo de sua estreia. Mas só para dar uma breve opinião, julgo que a produção inaugura um novo patamar do que se convencionou chamar de blockbuster, especialmente no que diz respeito a forma como se utilizou da internet para alcançar muito além do público que se imaginaria para um filme baseado na boneca mais famosa de todos os tempos. Afinal, Barbie não é uma versão live action das famosas animações da Barbie que permearam a infância de muitos de nós e que até hoje fazem algum sucesso entre crianças de várias idades, ele vai muito além disso. Para vender essa ideia que ampliasse seu almejado público era necessário que antes de sua estreia todos entendessem para que lado o filme se voltaria, o que foi feito com o uso das mídias sociais de uma maneira tão hábil que poucas vezes vi surtir o efeito que causou. De forma que em um dado momento, apenas o simples uso da cor rosa em um outdoor já passaria a mensagem de divulgação necessária, e, assim, Barbie conseguiu cativar seu público alvo (e diria que até além disso), independente da faixa etária (contanto que esteja acima dos 12 anos recomendado).

Dito isto, é impressionante eu não apenas não ter me decepcionado, levando em conta o tamanho da divulgação, mas, ao contrário, ter toda e qualquer expectativa superada muitas vezes após sair da sessão. O filme nos apresenta uma realidade fantástica, onde depois de tantos anos brincando com bonecas que simulavam bebês, as treinando para seus inescapáveis futuros como mães, as meninas do mundo inteiro seriam apresentadas a um outro padrão de boneca, uma que ao invés de as colocarem no lugar de cuidadoras adestradas, as servissem como modelo e espelhasse uma outra possibilidade para os tantos futuros daquelas meninas, seja profissionalmente, romanticamente e, em todo caso, socialmente. Assim surge a Barbielândia, um universo onde todas as personagens e possibilidades do universo da boneca vivem. Um mundo perfeito, onde todos os dias são perfeitos, controlado por fortes figuras femininas, todas elas versões diferentes da Barbie, desde a Barbie sereia e astronauta até a Barbie da Suprema Corte e a ganhadora do Prêmio Nobel. Um mundo onde todas as versões do Ken, criado para ser o eterno par romântico da boneca, são completamente apaixonados e vivem em função dessa paixão. Tudo isso nos é apresentado numa clássica introdução narrada por Helen Mirren, cheia de referências tanto do cinema (como esta), como do próprio universo de plástico da boneca.

Até aí o filme nos entrega um humor simples, mas certeiro, quase como se estivéssemos vendo um daqueles filmes de fantasia clássicos dos anos 80 e 90, que misturavam o mundo real e alguma terra fantástica. Conhecemos assim Barbie (Margot Robbie), uma Barbie estereotipada (é assim mesmo que ela se define), aquela que vem á nossa mente quando pensamos em Barbie: loira, alta, magra, sempre com roupas belíssimas, no seu conversível rosa, acenando para todos que encontra na rua, ou no céu… ou no espaço. Todos em Barbielanlândia acreditam que fizeram do Mundo Real um lugar melhor, empoderando meninas de todas as partes, levando-as a uma posição de privilégio onde quer que queiram estar ou quem quer que queiram ser. Até que algo inesperado rompe essa perfeição, algo que Barbie nunca havia sentido, e que a leva ao mundo real… junto com Ken (Ryan Gosling). E é claro que não demora muito para os dois perceberem que o lugar não era exatamente o que esperavam.

Sem entrar em detalhes parece ser um roteiro bastante simplório, até mesmo infantil demais, mas o trabalho que aqui fizeram Gerwig e Noah Baumbach é algo que, para mim, chega a genialidade. Pois ao se utilizarem da fama mundial de um brinquedo, originalmente tido como exclusivo para um público infantil feminino, o filme usa de uma ironia sagaz e de uma perspicácia ímpar para abordar temas como patriarcado, masculinidade frágil, conservadorismo, entre muitos outros, de uma forma contumaz, mas sem em nenhum momento parecer panfletário. O filme se alimenta sim do feminismo e de várias de suas pautas clássicas, isso é bastante óbvio até, mas não cai no erro de se tornar monotemático e muito menos monótono. Não é uma palestra sobre um tema, mas sim uma divertida jornada que usa o feminismo de passarela, numa suave e divertida caminhada, debatendo padrões de beleza, comportamentos sociais, igualdade de gênero, mas também fazendo menções ao mundo dos brinquedos, à própria corporação que criou e vende a Barbie e sua visão capitalista do negócio, ao mesmo tempo em que nos faz rir e nos comove.

Tecnicamente o filme é extremamente efetivo ao que se propõe. Um design de produção liderado por Sarah Greenwood, e com uma enorme e competente equipe de cabelo, maquiagem e figurino – as roupas parecem realmente ter sido costuradas para bonecas, só que em um tamanho real -, aliados a um cenário que cria uma Barbielândia surpreendentemente divertida, onde tudo parece ser realmente de plástico e borracha (e muita coisa realmente o é), construindo algo como um surrealismo infantil cor de rosa e azul bebê. A escolha de Rodrigo Prieto para a direção de fotografia não poderia ser mais acertada, vide sua experiência tanto em grandes filmes como alguns de Scorsese e Iñárritu, como em videoclipes de Taylor Swift e Lana Del Rey. Prieto aqui é capaz de fomentar a artificialidade divertida de Barbielândia contrastado com o cinzento e monótono Mundo Real, além da frieza institucional e concreta da sede da Mattel.

Quanto ao elenco, Margot Robbie e Ryan Gosling dão simplesmente um show de carisma, tanto quando estão interagindo entre si, quanto individualmente. O trabalho corporal e facial, para que seus movimentos e expressões pareçam levemente sintéticos é surpreendente, colaborando tanto para a credibilidade necessária para que acreditemos naquele mundo absurdo, quanto para o humor advindo deste mesmo inacreditável. Todo o elenco de apoio está muito bem, formado por grandes nomes como Emma Mackey, Alexandra Shipp, Issa Rae, Sharon Rooney, Kate McKinnon (que parece ter nascido para ser a Barbie Estranha), Ncuti Gatwa, Kingsley Ben-Adir, Simu Liu, respectivamente como alguns dos outros vários Barbies e Kens que aparecem, e claro, o hilário Michael Cera como Allan, o desconhecido amigo de Ken. Os números musicais e as canções fazem quebrar qualquer preconceito que tenhamos com algo do tipo, contribuindo narrativamente ao mesmo tempo que nos arranca boas gargalhadas.

O núcleo do Mundo Real porém, em minha opinião, deixou um pouco a desejar, especialmente Gloria (America Ferrera) e Sasha (Ariana Greenblatt), a mãe e a filha adolescente que acabam se envolvendo nas desventuras de Barbie ao tentar se concertar. Ambas poderiam ter maior agência na narrativa, mas acabam ficando bastante apagadas por tudo que as rodeia. Entretanto funcionam bem como as personagens em quem nós, espectadores do mundo real Real, podemos nos ver e acabam entregando alguns bons diálogos ao filme. E por último o núcleo da Mattel, que traz um Will Ferrell com um humor escrachado como já se espera dele, contracenando com um Connor Swindells, contido, mas competente. Ambos servem bem aqui como uma sátira do mundo corporativo em contraparte ao próprio produto que fabricam e representam.

Barbie é sim tudo isso que nos foi vendido de antemão, e é ainda mais do que isso. É um filme que deve ser visto por muitas e muitas pessoas pelo burburinho que gerou, e que bom que vai. É raro uma produção de tamanhas proporções, com um elenco de peso e recursos milionários de um grande conglomerado da indústria do cinema tocar em pontos tão atuais quanto fundamentais para uma sociedade que precisa mais do que nunca discuti-los. Barbie pode até ser acusado de muitos pecados, seja o de visar o lucro pautando temas sociais, seja o de simplificar esses temas irresponsavelmente, mas o fato é que muitas e variadas pessoas vão vê-lo, e eu diria que é praticamente impossível sair desse filme sem uma mínima reflexão da sociedade em que vivemos.


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