Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo – A essência do cinema num multiverso de possibilidades

De tempos em tempos, o cinema se renova ganhando um novo fôlego apresentando alguma inovação tecnológica ou algum filme fora do comum que nos mostra que a sétima arte é sempre uma caixinha de surpresas e que o poder do contador de histórias é infinito em um mundo de ideias em profusão. Foi assim que surgiu obras atemporais como Star Wars de George Lucas, Jurassic Park de Steven Spielberg, Exterminador do Futuro 2 na mão de James Cameron, assim como a poesia em forma de filme O Tigre e o Dragão de Ang Lee, bem como a viagem profunda das irmãs Wachoswiski na obra prima Matrix, ou na fantasia sombria O Labirinto do Fauno, ou no imersivo A Origem de Christopher Nolan e a inovação visual Avatar, mais uma vez com James Cameron.

Cinema é isso, a capacidade de romper a barreira do senso comum na busca de encantar seu público de maneiras diferentes e surpreendentes. É sobre isso que se trata Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All At Once, 2022), o longa dirigido por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como “Os Daniels”, conta a história de uma senhora imigrante chinesa que se envolve em uma aventura louca onde só ela pode salvar o mundo explorando outros multiversos que se conectam com as vidas que ela poderia ter vivido. 

A premissa do filme trabalha com possibilidades, mais uma vez esta palavra que tem muitas vertentes e serve para sintetizar o que é o multiverso, que nada mais é do que a versão do nosso universo acontecendo em paralelo de várias formas diferentes, de infinitas maneiras diferentes que podem chegar ou não ao mesmo desfecho. Evelyn Wang (Michelle Yeoh) é a tal senhora em questão que se descobre no meio de um quebra cabeça complexo e talvez seja a única capaz de salvar o seu e outros universos.

O roteiro desenvolvido pelos “Daniels” é um emaranhado de ideias confusas inicialmente, com uma mitologia riquíssima que é dividida em três partes que vão expandindo de tal forma abraçar todo o conceito criado. 

 

“Tudo…”

Este filme requer atenção, o roteiro simplifica e complica suas explicações propositalmente e exige do expectador atenção aos detalhes e informações que ajudam não só a entender como funciona o multiverso, mas também embarcar nessa viagem estranha de puro apelo visual e linguístico.

O que diferencia esta produção da A24 das outras produções que já tentaram contar tramas semelhantes, é o fato de aqui temos uma ficção científica que usa como base o drama familiar, pois Evelyn, seu marido Waymond Wang (Ke Huy Quan) e sua filha Joy Wang (Stephanie Hsu) são o cerne da história de uma família disfuncional cheia de conflitos que servem como ponto de ignição de uma ambiciosa trama.

Se o primeiro ato talvez cause um impacto inicial que pode deixar o expectador um pouco assustado e com pé atrás, o segundo ato organiza as ideias, explora outros mundos, enquanto evolui sua forma de contar a história que é incrivelmente bem montada com uma edição inteligente de Paul Rodgers, que ajuda a elevar uma direção que só fica melhor a cada cena, acelerando e desacelerando à medida que alimenta sua mitologia. 

 

“….em Todo Lugar….”

A palavra para descrever Tudo em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo é ousadia, ao transitar entre vários gêneros numa narrativa que não se contenta em ser mais do mesmo, temos aqui um filme que é puramente uma ficção científica, mas que em outros momentos é um thriller de ação de artes marciais com sequências de lutas sensacionais que ajudam a subir a adrenalina, ao mesmo tempo que ganhamos também momentos lindíssimos de pura catarse, porém é quando o longa abraça o drama que percebemos o quão cerebral é o roteiro e como isso ajuda a catapultar três grandes atuações que fazem a engrenagem funcionar, bem como todos os múltiplos personagens que surgem durante a trama interpretados pelo trio principal.

O primeiro elo é Ke Huy Quan, o ator é um poço de carisma e charme, salpicado com um pouco de drama que ajudam a tornar seu personagem Waymond Wang ainda mais marcante. Aqui Quan é preciso, além entregar muito nas cenas de ação. Stephanie Hsu é o segundo elo, ao interpretar uma personagem enigmática de uma filha que tenta se abrir e se aproximar da mãe conservadora ao mesmo tempo que em outro universo se torna uma vilã implacável e misteriosa, Hsu é simplesmente brilhante na forma como atua e na forma como entrega uma carga dramática muito alta acentuada por uma relação mãe e filha que é uma das mais emocionantes já vistas no formato.

E se Quan e Hsu são incríveis, Michelle Yeoh é um monumento, fechando aqui o terceiro e mais importante elo. Muitos já admiravam a atriz pelos seus trabalhos anteriores, com destaque para O Tigre e o Dragão (Wo hu cang long, 2000) de Ang Lee, mas aqui Yeoh ganha um presente, um papel que ajuda a potencializar todo seu talento dramático e físico domado de uma forma exemplar, mostrando várias facetas, várias personalidades e várias versões capazes de entregar emoções genuínas que prometem fazer o expectador vibrar e chorar tamanha entrega da atriz.

 

“…ao Mesmo Tempo”

É deste modo que este longa se torna uma peça rara no cinema, uma narrativa que se desafia e que não tem medo de entregar desde as sequências mais emocionantes as mais bizarras em cenas que causam múltiplas emoções que vão desde tristeza, passando pelo tom melancólico, caindo as vezes propositalmente no pastelão até chegar num ponto de puro êxtase. Uma produção com a sensibilidade e precisão de um filme indie misturado com uma aura e ambição de blockbuster num equilíbrio que torna esta obra uma gratificante experiência cinematográfica.

No geral Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é simplesmente fantástico, talvez seja estranho demais para aqueles que buscam algo mais dentro dos padrões, mas é um deleite para aqueles que buscam algo fora deles. Este filme é tudo aquilo que se espera de uma apoteótica celebração do conjunto da obra, tecnicamente brilhante, com efeitos espetaculares, fotografia impecável, figurino deslumbrante, atuações excelentes, tudo isto é extremamente bem conduzido por uma direção apaixonante de dois diretores que transformam a arte de contar a história num verdadeiro espetáculo de luzes e cores que só o cinema pode produzir, que vai na essência da criação de uma boa premissa e se eleva de tal forma que tudo aqui se torna imperdível e marcante em uma das produções mais inteligentes dos últimos anos, bem como uma das melhores desta década.


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