Este ano a academia fez uma curadoria para a categoria de curtas-metragens de animação surpreendentemente 2D. Não temos nenhum curta inteiramente feito em 3D digital.
A categoria sai do castigo em que foi colocada no ano passado e volta a ser exibida durante a premiação, porque claramente tinha sido uma ideia péssima remover oito categorias da noite para uma pré-premiação.
Sem filmes pesados ou com grandes experimentações dessa vez, todos seguem uma linha narrativa fácil de identificar e a maioria conta uma pequena história com início, meio e fim, mas todas muito cativantes, cada uma a sua maneira, e com suas técnicas específicas, alguns sendo mais fáceis de falar sobre do que outros. E novamente, os grandes e consagrados estúdios de animação estão fora da competição.
O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo
(The Boy, the Mole, the Fox and the Horse, 2022)
Adaptação de um livro best seller homônimo escrito por Charlie Mackesy, O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo é dirigido por Peter Baynton e pelo autor da obra original e contou com uma grande equipe espalhada por 20 países. O filme quase foi um longa, mas depois acabou sendo decidido por uma minutagem menor e com o apoio de grandes nomes da indústria do cinema é o favorito para levar o prêmio – e provavelmente o vai.
O curta com ares de O Pequeno Príncipe e Ursinho Pooh conta a história de um garotinho que se perdeu em uma floresta e com a ajuda dos animais que o acompanham no título tenta encontrar uma casa para viver.
A animação emula as ilustrações do livro e já é um show por si só, cada frame pode facilmente se tornar o fundo de tela do seu computador. Simples, porém delicado e fluído, o traço combina muito com toda a vibe sensível da animação e trabalha muito bem as cores em contraste com o fundo branco e nevado complementado pela linda trilha sonora. A voz original conta com grandes nomes e a dublagem brasileira não fica atrás, ambos os trabalhos são repletos de sutileza e cuidado, é fácil perceber o carinho das vozes com suas respectivas personagens.
Ao acompanhar a jornada desse grupo de amigos é impossível não se emocionar, enquanto buscam um lar para o garoto, eles vão falar sobre tudo e soltar vez ou outra frases para se pensar e refletir, sobre bondade, esperança, família, insegurança, em suma, eles conversam sobre a vida e como cada um se sente neste mundo. As falas podem parecer deslocadas ou gratuitas de início, talvez até forçadas, e na verdade talvez sejam isso mesmo, muites com certeza vão dizer coisas como “esse filme é uma coleção de frases de autoajuda e positividade”, mas a verdade é que mesmo tendo muitas falas desse tipo, para quem compartilha das inseguranças e medos das personagens, vai se sentir abraçade, entendide, acolhide, exatamente como as personagens são umas pelas outras ao longo dos 30 minutos de duração da obra.
O Menino, a Toupeira, a Raposa e o Cavalo pode ser assistido no Apple TV+ com legendas e dublagem em português disponíveis.
The Flying Sailor
(2022)
Na manhã de 6 de dezembro de 1917, no porto de Halifax, na Nova Escócia no Canadá, um navio francês repleto de explosivos colidiu com um navio norueguês. A explosão que o acidente gerou matou milhares de pessoas, feriu outras milhares e cegou algumas centenas. Mas no meio de toda essa tragédia, um causo curioso: um marinheiro foi lançado dois quilômetros no ar pela explosão e sobreviveu.
Dirigido e escrito por Amanda Forbis e Wendy Tilby, “O Marinheiro Voador”, em tradução livre, acompanha esse homem, lançado aos céus e sobre o que ele pode ter pensado e refletido enquanto voava.
Um curta simples, o de menor minutagem entre os concorrentes, com algumas imagens reais com intervenções em 2D, onde durante a maior parte do tempo vemos o protagonista girando no ar enquanto poeticamente imagens de sua vida e reflexões passam ao seu redor e por sua mente. Fazendo pequenos paralelos e metáforas como, por exemplo, um dia você soca alguém, e no outro é socado por uma enorme explosão.
Um filme sobre como geralmente não pensamos em como as nossas vidas, as nossas existências são frágeis e efêmeras, mas nem por isso menos valiosas, nem por isso menos dignas, nem por isso valem menos a pena serem vividas e experienciadas.
The Flying Sailor pode ser assistido aqui, no canal do Youtube da The New Yorker.
An Ostrich Told Me The World is Fake and I Think I Believe It
(2022)
O representante do stopmotion na disputa e o meu curta favorito dentre os cinco. Escrito, dirigido e animado por Lachlan Pendragon, “Um Avestruz me Contou que o Mundo é Falso e eu Acho que Acredito”, em tradução livre, conta a história de Neil, um vendedor de telemarketing que percebe que está em um mundo de stopmotion e começa a questionar sua realidade.
Para mim o mais interessante na obra é a nossa visão. O filme não busca ser um stopmotion perfeito e polido, onde você esquece que aquilo foi feito por alguém, muito pelo contrário, o diretor quis que ao olhar para os bonecos fosse visível que aquilo é algo fabricado, irreal, então a tela tem dois níveis basicamente. A nossa frente está uma pequena tela de retorno, aonde vemos a animação final, mas ao fundo vemos um timelapse, ou seja, vemos os braços do animador movendo as personagens. Então é como se estivéssemos vendo um making of e um resultado final, tudo ao mesmo tempo.
Lachlan sabe usar bem a metalinguagem em sua obra e é impossível não se lembrar de obras como Matrix (The Matrix, 1999) ou O Show de Truman: O Show da Vida (The Truman Show, 1998), conforme além de perceber falhas em seu mundo, o protagonista começa a questionar sua própria vida, sua existência básica, a forma como é impossível progredir na empresa e a falta de profundidade na relação com seus colegas de trabalho. Sim, uma comédia divertida, mas que em suas camadas pode causar uma reflexão com a qual é bem fácil de se identificar.
An Ostrich Told Me The World is Fake and I Think I Believe It não está disponível no Brasil, mas o filme tem alguns uploads não autorizados por ai, em uma rápida busca é possível encontra-lo, apenas com o áudio original em inglês.
My Year of Dicks
(2022)
Inspirado no livro Notes to Boys: And Other Things I Shouldn’t Share in Public (Notas Sobre Garotos: e Outras Coisa que eu Não Deveria Compartilhar em Público, em tradução livre) escrito pela roteirista Pamela Ribon que também assina o roteiro do curta, produzido por Jeanette Jeanenne e dirigido por Sara Gunnarsdóttir, é uma animação em rotoscopia, coming of age, de amadurecimento, que em seu título já carrega um trocadilho, já que “dick” em inglês – além de apelido para Richard – pode significar tanto pênis, como idiota/babaca. Então O título pode ser traduzido tanto como Meu Ano de Paus ou Meu Ano de Babacas, um leve spoiler do que está por vir.
O livro e o curta são baseados na vida da própria Pamela Ribon e quando em seus 15 anos durante os anos 90 ela estava determinada a perder sua virgindade e acabou tendo que lidar com a pior raça de todas, meninos adolescentes.
As desventuras amorosas e sexuais de Pamela são retratadas de modo leve e divertido, misturando um pouco o modo como lidamos com esses eventos hoje com como lidávamos na época, para poder misturar o humor e o drama sem invalidar o que a protagonista sentia, sem também catastroficar tudo, como fazemos nessa fase da vida, com a animação assumindo novos estilos, aspectos e sofrendo intervenções conforme os sentimentos e situações em que a protagonista se envolve, evidenciando o que ela está sentindo ou pensando.
O processo foi todo feito a distância, então a própria equipe de animação e o elenco gravaram as cenas de referências, além de muitos vídeos feitos pela própria Pamela quando jovem que ela preservou e usaram fotos da casa de infância da autora para os cenários também, então para quem ainda pegou os anos 90, começo dos anos 2000, o filme é um prato cheio de nostalgia.
My Year of Dicks está disponível aqui no Vimeo, no canal da diretora, apenas com o áudio original em inglês, assim como um behind the scenes, mostrando como foi o processo de realização filme, e um making of, onde a roteirista, a produtora e a diretora conversam sobre o como a ideia surgiu e suas intenções com a obra.
Ice Merchants
(2022)
“Mercadores de Gelo”, em tradução livre, é escrito e dirigido por João Gonzalez e é o primeiro curta de animação português a concorrer ao Oscar e acompanha a vida de um pai e seu filho que moram no topo de uma montanha nevada, onde fabricam gelo para vender na cidade muitos metros abaixo.
Com seu estilo particular de cores e uma arte que vai muito para o exagero em alguns momentos, o filme chega a ter um aspecto onírico mostrando a rotina daquela pequena família solitária e como ela basta para as personagens, ali reside a felicidade, mesmo que assombrada por uma ausência, uma falta.
João incorpora muitas sombras e movimentos de câmera ousados no filme, muito bem complementados pela trilha sonora, tornando tudo ainda mais comovente e fortalecendo as metáforas e temas que a obra aborda de forma tão sutil e sem nenhum diálogo sobre família, saudade e solidão.
Ice Merchants está disponível aqui, no canal do Youtube da The New Yorker. Infelizmente não está disponível no Brasil, mas nada que usar uma VPN não possa contornar. E no canal de João Gonzalez é possível assistir a um making of em duas partes do processo de criação do curta, aqui e aqui.
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Bacharel em Cinema e Audiovisual, roteirista, escritora, animadora, otaku, potterhead e parte de muitos outros fandoms. Tem mais livros do que pode guardar e entre seus amigos é a louca das animações, da dublagem e da Turma da Mônica. Também produz conteúdo para o seu canal Milady Sara e para o Cultura da Ação TV.