No dia 20 de abril de 1989, Chucky, o brinquedo assassino, era apresentado ao mundo. Através da direção de Tom Holland, a criação de Don Mancini ganha corpo no filme Brinquedo Assassino (Child’s Play, 1988). O público acompanhava com aflição o mistério que era construído em torno de Andy e Chucky. Com um roteiro inovador, Mancini enganava seu espectador o fazendo suspeitar não apenas do boneco Good Guy, como do pequeno protagonista, mas é a partir do momento que o brinquedo assassino é desmascarado como o responsável pelo rastro de sangue que o longa abraça sua essência caricata e conquista o espectador. Desde então a franquia tem mantido um público muito cativo e uma trajetória sólida de quase 40 anos, ao contrário da maioria de seus colegas serial killers, que ao passar do tempo perderam sua essência em incontáveis e exaustivas sequências. Essa longevidade é fruto do olhar aguçado de Mancini para os pontos fortes da sua criação e para o mercado audiovisual do horror. Ele cria principalmente para os fãs, mas não somente para eles. Poderia discorrer por páginas e páginas sobre como cada obra tem seu brilho (sim, até mesmo Brinquedo Assassino 3 rs) e até falarei um pouco sobre algumas delas, mas gostaria de focar no trabalho que melhor exemplifica o que quero pontuar: a segunda temporada da série intitulada Chucky (2021 -).
A temporada que foi ao ar em outubro de 2022 pelo canal Syfy deu continuidade direta aos eventos da primeira e às histórias de Lexy (Alyvia Alyn Lind), Devon (Bjorgvin Arnarson), Jake (Zackary Arthur), Tiffany (Jennifer Tilly), Chucky (Brad Dourif) e Nica (Fiona Dourif). O primeiro episódio é bastante morno e arrastado, sendo o mais fraco da temporada, mas no geral cumpre seu papel de apresentar algumas das tramas da temporada. Nele um Chucky com sede de vingança arma para reunir o trio novamente e consegue, o encontro resulta em uma explosão e na morte trágica do pequeno Gary (Simon Webster), o irmão adotivo de Jake. A culpa dessa explosão cai sob os ombros de Lexy, Devon e Jake, que são mandados para um reformatório católico.
Aqui temos a primeira grande sacada desta nova temporada. Ao optar por um reformatório católico como cenário principal, cria-se a oportunidade de apresentar novos personagens, construir uma ambientação claustrofóbica e mórbida e, principalmente, levantar debates sobre religião. Mancini agarra todas essas oportunidades com unhas e dentes e nos presenteia com novos personagens complexos. A carismática Nadine, vivida pela talentosíssima Bella Higginbotham, fez um sucesso absurdo, chegando a ir além da bolha do fandom e chamando atenção de um novo público para a série. Ela traz um senso de esperança para o trio (e para o espectador) em meio a um contexto tão desesperador, em especial para a Lexy e Jake. Ao lado de Nadine vemos os momentos de maior vulnerabilidade da protagonista interpretada por Alyvia Alyn Lind (abro parênteses para defender que Lexy tem um dos melhores arcos de redenção da atualidade, a loirinha é quase o Zucko do terror haha). Mesmo sendo uma personagem essencial para o trio principal, ela não órbita somente ao redor deles e tem sua própria trajetória e complexidade. Sua maneira única e ingênua de enxergar o mundo é, na verdade, um mecanismo de defesa para encarar seus traumas. Nadine foi uma personagem marcante, com uma pureza e fidelidade que nos cativa e emociona até o último momento de tela.
Os novatos do núcleo adulto são os pilares do tom questionador da temporada. Devon Sawa vive o rígido e intolerante Padre Bryce, trazendo para a série uma carga mais real e humana de horror e sendo o ponto da narrativa que exemplifica os discursos opressores da Igreja Católica contra grupos dissidentes. Ele é um dos vilões da temporada, mas na reta final observamos o personagem crescer e reavaliar seus conceitos de fé ao se ver diante das consequências de suas decisões corruptas e opressoras e precisar confrontar o sádico boneco assassino. A Irmã Catherine, interpretada por Andrea Carter, é o contraponto narrativo de Padre Bryce. Sagaz e questionadora, enxerga sua fé de uma forma mais tolerante e justa. Não tem medo de se impor diante das decisões absurdas que o padre toma, especialmente advogando a favor do jovem Devon. Ela desempenha um papel importante, mas o roteiro falha em enxergar seu potencial de ser um dos destaques do núcleo adulto e não lhe oferece um arco próprio, não entendemos o que faz dela essa mulher forte e justa. Ela encerra sua trajetória como uma personagem de apoio para Devon, Bryce e como ponto argumentativo dos debates sociais que Mancini se propõe a levantar.
Lara Jean Chorostecki nos oferece uma caricata e divertida Irmã Ruth, personagem onde são centradas as críticas ao fanatismo religioso, ela traz alguns dos melhores momentos cómicos da temporada. A freira desmiolada abraça todo o humor absurdo que é a alma da franquia, chegando a acreditar que o boneco Good Guy é a própria reencarnação de Jesus Cristo e trabalhando ao seu lado! Por fim, Rosemary Dunsmore é o grande destaque dos novos personagens adultos, com uma atuação impecável e genial, ela tira o espectador do sério com a impetuosa e inescrupulosa Dra. Amanda Mixter. A psicóloga começa como uma personagem secundária, mas nos últimos episódios se revela uma personagem central da trama, rendendo algumas das melhores reviravoltas da temporada. Seu papel também traz uma crítica à igreja católica enquanto instituição corrupta por ser conivente com seus planos, mas isso fica mais escondido nas entrelinhas.
Em paralelo ao núcleo da Catholic School of the Incarnate Lord (Escola Catolica do Senhor Encarnado, em tradução livre), temos o arco de Tiffany Valentine, a rainha da franquia interpretada com maestria por Jennifer Tilly desde sua primeira aparição em A Noiva de Chucky (Bride of Chucky, 1998) e sua relação doentia e absurda com Nica Pierce, vivida pela magnífica Fiona Dourif, que é atormentada pelo infame casal desde A Maldição de Chucky (Curse Of Chucky, 2013) e continua refém não só da assassina como também de Chucky, cuja alma segue presa em seu corpo. Desta vez há uma transformação na personagem de Dourif que com ajuda de um aliado inesperado (e aliades sobre quem falarei mais a frente) consegue aos poucos quebrar essa trajetória de uma década de violências físicas e psicológicas. É muito satisfatório ver Nica finalmente subvertendo seu lugar de caça e se tornando a caçadora, isso elevou sua personagem a um novo patamar, deixando abertura para que ela seja novamente o grande destaque das futuras obras da franquia. Além disso, Fiona segue dando um show ao interpretar Chucky/Charles Lee Ray com tanta grandiosidade quanto seu pai, Brad Dourif, que interpreta o grande assassino desde 1998.
A primeira temporada da série chamou atenção por dar continuidade às obras Brinquedo Assassino 2 (Child’s Play 2, 1990) e O Culto de Chucky (Cult of Chucky, 2017) enquanto apresentava os novos rostos à frente da franquia. A segunda dá continuidade a essas conexões (mas com uma aparição menor de Kylie e Andy) e expande ainda mais seu universo ao se conectar com o grande divisor de águas da franquia: o infame clássico do horror queer O Filho de Chucky (Seed of Chucky, 2004). O longa foi o primeiro dirigido por Don Mancini e divide opiniões até hoje por ser o mais cômico e caricato da franquia. Eu pessoalmente acho o filme mais inteligente e corajoso, por trazer críticas ácidas a Hollywood e especialmente por tratar de não binariedade em uma época em que isso não era debatido de forma alguma na mídia.
Assim como os jovens sobreviventes da primeira temporada, Tiffany também está sendo perseguida pelo boneco, mas isso fica em segundo plano por boa parte da temporada e podemos vê-la, pela primeira vez em 24 anos, construir uma trajetória que não gira em torno de Chucky. Tendo roubado não apenas o corpo de Jennifer Tilly, mas também sua identidade, ela vive como se fosse a atriz desde então. Porém com um número de gastos incompatível com a fortuna da atriz (que não faz um trabalho novo desde então) e o desaparecimento de Nica Pierce ligado ao nome de Tilly, Tiffany começa a enfrentar dificuldades e a acumular uma pilha de corpos em seu armário para tentar sustentar essa farsa. Sua rede de mentiras se torna ainda mais insustentável com a chegada de sues filhes, Glen e Glenda.
A dupla chega no segundo episódio, com uma série de questionamentos para Tiffany que elus não irão medir esforços para obter respostas. Quem os interpreta com uma atenção primorosa aos detalhes que distinguem a personalidade de Glen e Glenda é Lachlan Watson, de O Mundo Sombrio de Sabrina (Chilling Adventures of Sabrina, 2018 – 2020), atore não-binarie e ativista queer. A relação construída entre elus é delicada, complexa e de uma conexão visceral. Além de seus conflitos em seguir ou não os instintos assassinos de seus pais, Glen e Glenda tentam preencher as lacunas em branco de seu passado e descobrir o que Tiffany Valentine esconde. Um grande destaque da temporada é o quarto episódio “Morte em Negação”, focado na chegada delus que resolvem chamar amigos e familiares para uma festa surpresa para desestabilizar Tiffany que, na verdade, elus ainda conhecem como Jennifer Tilly. O episódio sintetiza muito bem o papel que vão desempenhar ao longo da trama, além de dar o pontapé inicial para a emancipação de Nica e começar desvendar as mentiras de Tiffany. Tudo isso envolto em um mistérioso assassinato inspirado nos clássicos de Agatha Christie. Além da aparição de Glen e Glenda, temos um breve retorno de Jennifer Tilly, que ainda está presa na boneca sendo mantida em cativeiro por Tiffany, sua irmã Meg Tilly (interpretada pela própria Meg Tilly) e o boneco que era o corpo original de Glen e Glenda.
E claro, todos esses personagens têm um fator em comum: Chucky! Esse elo vai ser responsável por unir todos os arcos da série. Isso é feito de forma silenciosa para alguns personagens e bem explícitas para outros. No início pouco é revelado e o plano de Chucky não parece fazer sentido algum, ao desenrolar da temporada até temos uma falsa ideia de entender o que está acontecendo, mas é na reta final que tudo passa a fazer sentido. Assim como um mestre de marionetes, Charles Lee Ray vai manipulando cada um dos personagens e criando um caos absurdo regado a muita carnificina. As cenas de morte nesta temporada foram bem gráficas, debochadas e teatrais, do jeito que gostamos de ver e que só Chucky consegue fazer. Ele está ainda mais furioso e imbatível que nunca e nos conduz a uma finale com um ritmo crescente de tirar o fôlego, cheio de revelações e grandes surpresas (algumas delas eu não fiz nenhuma menção sequer para guardar a surpresa do momento, é pagar para ver).
Arrisco dizer que a segunda temporada de Chucky foi até agora o trabalho mais maduro dentre as obras do infame assassino em corpo de boneco. Assumindo um tom mais maduro e crítico sem perder sua essência escrachada, a série trata com muito respeito seus personagens marcantes, apresenta excelentes novos personagens e nos entrega ótimas possibilidades de expansão de seu universo no futuro. Ainda não há uma confirmação oficial da terceira temporada, apenas rumores, mas acredito que na TV ou no cinema, Don Mancini vai continuar desenvolvendo com sagacidade sua franquia, mesclando bem o novo ao “tradicional” (se é que há algo tradicional sobre essa franquia).
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Travesti não binária, artista multilinguagens e gastronoma com foco na cultura alimentar cearense. Desde criança encontrou na fantasia e no horror espaços de fuga de uma dura realidade e hoje, enquanto escritora e produtora audiovisual, busca contar narrativas sobre transgeneridade. Assina a direção e montagem do curta Ordem das Magnólias e de suas performances como a drag queer YÜMMY, além outros trabalhos com figurino, produção de trilha sonora e pós produção.