A Casa Coruja (The Owl House, 2020 – 2023) é uma animação criada por Dana Terrance e distribuída pela Disney sobre uma jovem latina, Luz Noceda, que após ser enviada a um acampamento para ser “menos peculiar” termina indo parar num mundo fantástico, na cidade de Ossoburgo. Contando com duas temporadas anteriores ao episódio especial sobre o qual o texto abordará, o seriado traz temáticas relacionadas a distúrbios psicológicos, pais (ou figuras paternas) controladoras, preconceito com o diferente e outros tópicos bem reais. Além de ter sido a primeira animação da Disney com uma protagonista abertamente bissexual, o seriado tem uma grande quantidade de personagens pertencentes à sigla LGBTQIA+. Não é por menos que, mesmo tendo sido cancelada pela empresa que financiou leis anti-gays, a obra criada por Terrance foi indicada ao 34⁰ GLAAD Media Awards, pela sua representação justa e adequada da comunidade e suas questões.
Em sua primeira temporada somos apresentados ao mundo bruxo e à cidade de Ossoburgo, onde nossa história se passa. Me vejo obrigada a falar como a animação usa de elementos mais puxados para o terror ao longo de sua trajetória, seja em alguns episódios, seja nos designs de personagens. Ossoburgo é uma cidade dentro do cadáver de um Titã, ser poderoso adorado pela população – inclusive a expressão comumente usada ao longo da série é “Ai meu Titã. A Casa Coruja é o lar da bruxa selvagem Eda, seu mascote/filho adotivo King e o Corujito, um demônio que é a própria casa ou ao menos habita o espaço da casa, esses personagens são protagonistas e a família escolhida de Luz durante seu tempo no mundo bruxo. Grandes aventuras se passam ao longo das duas temporadas, mesmo que as aventuras da primeira sejam mais focadas em explorar a construção de mundo e conceitos relacionados à maldição da Mulher Coruja, Eda. Temos inúmeras referências à cultura pop, como uma escola de magia, o mito do herói, sempre trazidas com uma pegada de humor e deboche de uma forma divertida pela série. Quando chegamos na segunda temporada o assunto começa a ficar mais sério, provavelmente de uma forma mais súbita após a Disney tê-la cancelado (reduzindo a duas temporadas e três especiais de quarenta minutos) e a temporada parece depender muito mais de todos seus episódios no geral, menos de forma episódica.
Spoilers sobre o final da segunda temporada a seguir
Seguindo para o dia da Unificação, algo planejado pelo Imperador Belos, recém descoberto como um dia para acabar com todos os bruxos com uma insígnia de um coven, Luz se fez capturar para impedir que Belos machucasse Eda e os demais adultos da rebelião. Em episódios anteriores da série foi revelado sobre como, em uma viagem pelo tempo, Luz havia ajudado Philip, o primeiro humano a habitar o mundo bruxo, e essa ajuda fez com que Philip conseguisse fazer contato com o ser conhecido como Colecionador. Philip e Belos já haviam se revelado serem a mesma pessoa, uma teoria extremamente comum dentro do fandom da série. O grupo de Luz chega ao resgate, com seus amigos Willow, uma bruxa com enormes habilidades sobre as plantas, Gus, poderoso bruxo de ilusões, a namorada da protagonista Amity, com magia focada em abominações (um tipo de gosma verde que pode ou não ganhar vida ou tomar outras formas), Hunter, antigo Guarda Dourado e sobrinho de Belos, cuja identidade real escondia um segredo macabro até dele mesmo, King, o irmão de Luz que recentemente descobrira ser o último dos Titãs. Por anos Belos usou de magia selvagem através de glifos (símbolos usados por bruxas do passado e na série redescobertos por Luz para acessar a magia da ilha) e se tornou uma criatura macabra e gosmenta sem feições humanas. O que termina por ser irônico já que o mesmo é um caçador de bruxas da época da inquisição cuja missão é eliminar todas as bruxas por algo acontecido no passado entre ele e seu irmão. O confronto entre o grupo e Belos não vai muito bem para os nossos heróis, até King encontrar onde o Colecionador estava preso e logo descobrir que um Titã havia prendido o mesmo e só um Titã poderia lhe libertar. Ao libertar o Colecionador, King basicamente resolve o problema com Belos e o dia da União mas a personalidade infantil e desenfreada do Colecionar tem planos de brincar de “Casa Coruja” com toda a ilha de Ossoburgo. Usando uma porta para o mundo humano, os jovens conseguem escapar mas Luz se recusa a largar King, que usa habilidades titânicas nela e a joga pela porta após a agradecer por ter sido sua irmã.
Levados ao mundo humano, os cinco vão até a casa de Camila Noceda, mãe de Luz. Um dos episódios da segunda temporada apresentou um basilisco (ser capaz de mudar de forma e absorver magia) chamada Vee e fugida das Ilhas Escaldantes para o mundo humano, após meses se passando por Luz, Vee foi capturada por um vilão humano e salva por Luz e Camila. Então já há esse primeiro contato com a magia por parte da matriarca Noceda, além de uma breve compreensão das aventuras e problemas enfrentados por Luz ao longo do seriado. Somos logo apresentados aos enredos guia desse primeiro especial, Luz não deseja contar aos seus amigos sobre ter auxiliado Philip ao encontrar o Colecionador e Hunter não quer revelar sobre a sua verdadeira origem – falarei sobre isso mais a frente.
Segredos nunca ficam guardados, mas não é sobre revelar esses segredos o enredo dessa obra, mas sim como Luz e Hunter lidam com as próprias informações. Segredos, mesmo quando guardados, ainda corroem, em especial isso pode ser sentido através das cenas de Luz.
Desde a sua apresentação há um fato muito bem apresentado sobre Luz: ela não se encaixa muito bem no mundo humano. Sua imaginação era o seu combustível para suas atividades na escola e isso comumente a colocava em problemas, até finalmente sua mãe a mandar para um acampamento focado em fazer as crianças pensarem dentro da caixa. Conhecer um mundo mágico e fantástico é o sonho de todas as crianças sonhadoras como Luz, mas a personagem se julga culpada por todos os problemas enfrentados por seus entes queridos, sejam estes Eda e King, presos à mercê do Colecionador, ou os jovens presos no mundo humano longe de suas famílias. O especial consegue evidenciar de forma bem dolorosa como a menina está lidando com suas ações e está disposta a se punir para compensar as mesmas. Não faz parte dos planos de Luz tentar voltar às Ilhas Escaldantes, pois ela de fato acredita ter feito a vida de todos lá piores. O inimigo em comum pairando sob esse especial não é o Colecionador, mas sim o Imperador Belos e como se ele não tivesse realizado o Feitiço de União nenhuma vida teria sido colocada em risco em primeiro lugar.
Enquanto Luz lida com a sua depressão, Hunter foge o máximo possível da sua origem e a relação real com Belos. Descobrimos um pouco próximo do final da temporada anterior como o Guarda Dourado é na verdade um clone dos restos mortais do irmão de Philip, chamado na lore de A Casa Coruja de “grimwalker”. Na montagem de abertura temos uma bela cena de Hunter se olhando no espelho e encontrando Caleb, irmão de Philip, e então vendo Belos antes do personagem decidir por cortar o cabelo sozinho e receber ajuda de Willow, sem perguntas a serem feitas. Ao longo do especial temos um momento de calmaria onde Hunter parece feliz, algo apontado por Gus, com quem ele divide o porão dos Noceda e cria um laço de amizade e um gosto por ficção científica. Sua felicidade se dá pois é a primeira vez onde ele não está atendendo às expectativas do seu tio, o Imperador, e pode fazer as coisas que lhe fazem bem. Desde as primeiras aparições de Hunter na segunda temporada, o personagem demonstrava a ausência de uma juventude apropriada e um desejo de agradar ao Imperador, lhe fazendo cometer ações que ele mesmo não concordava. É interessante como Hunter interage com os demais personagens, especialmente pois as internações não agressivas de Hunter na segunda temporada foram com seu palismã, Flapjack, um pássaro vermelho. Falando em Flapjack, o especial usa o palismã para contar a história dos irmãos Caleb e Philip Whiterbane e como havia uma bruxa envolvida, uma bruxas com um nome certamente familiar. De forma orgânica o enredo do mundo humano se completa aos poucos, relacionando com os acontecimentos das últimas temporadas e respondendo muitas respostas.
Sinceramente, nesse especial fica evidente o quanto foi roubado de toda essa produção. Com o cancelamento tivemos muitos episódios e arcos cortados. Inclusive, durante a cena de abertura podemos ver o passar dos meses e as aventuras pelas quais os jovens passaram, seu contato inicial com o mundo humano e a busca por um caminho de volta às Ilhas Escaldantes. O amadurecimento da narrativa já pareceu muito pesado da primeira para a segunda temporada, mas o tom do especial Thanks to Them, o primeiro de três, trabalha o horror fantástico e psicológico como nunca feito antes ao longo dos episódios anteriores da série. Termos perdido a chance de ver Gus, o maior entusiasta sobre o mundo humano, descobrir os muitos detalhes sobre esse novo mundo e a cultura humana, teria sido verdadeiramente divertido. O primeiro encontro de Amity e Luz, um encontro sem problemas, sem aventuras, uma simples ida a uma sorveteria, foi algo pelos quais os fãs muito esperaram, mas tiveram de se contentar com uma foto do momento num livro de fotografias. Estes foram criativos artifícios usados pela equipe de criação e design para dar um gosto do que poderia ter sido uma terceira temporada completa do seriado caso não tivesse sido brutalmente cancelada pela Disney. As possibilidades de aprofundar mais as relações entre esses personagens, como o grupo acolheria a Vee, a luta de Camila para entender e respeitar os costumes destes novos amigos de Luz, tudo isso teve de ser cortado e resumido. Mesmo assim o especial número um conseguiu trabalhar de forma fantástica temáticas mais sombrias e adultas, o mundo fantástico encontrando o mundo humano e o amadurecimento da protagonista em meio a tanto caos.
Olhando os primeiros pôsteres das temporadas – nesse caso levando em consideração cada um especial como uma temporada reduzida -, a sensação de temas diferentes fica mais claras. Se em uma primeira temporada o seriado trabalha bem como uma aventura num mundo da fantasia, mesmo trazendo demônios e elementos narrativos normalmente relacionados ao terror como monstros e maldições, a segunda temporada é um drama lidando com as consequências de escolhas e o crescimento dos seus personagens. Nosso primeiro especial marca uma aventura menos fantástica, pois mesmo os personagens bruxos estando com suas magias ainda se passa num mundo humano e sem magia própria, ao menos ao primeiro olhar. O terror se faz bem presente aqui, seja por uma figura monstruosa e sinistra, por possessões, pesadelos nos assombrando, Thanks to Them tem mais referências a terror que episódios prévios da obra e mesmo assim não perde o humor tão familiar da série. Falando sobre uma abordagem mais adulta, ao longo do episódio temos sinais claros de como a personagem Luz lida com a depressão causada por toda a culpa que ela coloca em si através de seu aspecto cansado, sendo desenhada ao longo do especial com olheiras. Esse episódio é o único da série inteira a se passar unicamente no Reino Humano, ressonando significativamente com os motivos previamente ditos sobre o seu tom peculiar. Também mergulhamos dentro das vivências de Luz com o luto após a morte de seu pai, podendo mergulhar de forma mais direta (não figurativamente falando, visto que no mundo da animação personagens podem se fato entrar nas mentes e memórias de outros e de si), em como a personalidade de Luz foi moldada para ser sonhadora e aventureira após a perda de seu pai. O seu maior interesse ao longo da série, uma série de livros chamada A Bruxa Boa Azura, também foi algo deixado por seu pai para ela e a sua obsessão com os livros ao longo do seriado fica mais clara e significativa.
Inclusive Luz vai fantasiada de Azura para o festival de Halloween, enquanto Amity, a sua namorada, vai da antiga inimiga de Azura, Hecate. Isso espelha o relacionamento das duas, já que Amity era inicialmente rival de Luz até a garota humana aos poucos ganha espaço em seu coração. O romance das duas é um dos pontos otimistas do especial, mesmo com o segredo de Luz, vemos a vontade da bruxa Amity de fazer algo especial e tirar o peso das costas de Luz por achar uma forma de voltar para as Ilhas Escaldantes junto dos demais habitantes do outro mundo. Os momentos entre as duas ao longo do episódio, mostram uma relação saudável e cheia de amor e carinho, capazes de superar mesmo grandes problemas. Ter um casal sáfico como Lumity é de fato um dos pontos altos dessa animação e como Dana Terrance se recusa a tratar o casal como algo menos que o casal protagonista de seu seriado é admirável se tratando de uma obra da Disney, conhecida por cortar cenas e tempo de tela da comunidade LGBTQIA +.
Mais uma vez é importante ressaltar como esse não é o projeto completo, não é assim como as coisas deveriam seguir e ter o cancelamento como um guia não é o ideal. Claro, alguns projetos não conseguem chegar a um final, então o fandom de A Casa Coruja tem muito a agradecer, isso não diminui como um seriado tão peculiar, com temas tão pouco abordados dentro de suas narrativas para jovens não merecia ser cancelado, especialmente levando suas premiações em diversos prêmios de grande nome para o mundo da animação e da diversidade. Ao longo dos 40 e poucos minutos de Thanks to Them temos interação com diversos personagens, mas a protagonista em nenhum momento interage com seus primeiros amigos jovens do seriado – Willow e Gus- ou com Vee, mesmo tendo sido ela a primeira do núcleo presente no especial a ter conhecido a basilisco. Essa maior ausência do lado da amizade de Luz começou a perder o foco quando chegou a segunda parte da segunda temporada, o romance com Amity e o desvendar dos mistérios envolvendo Belos, Philip e a verdadeira origem de King. Além de tudo, durante a segunda temporada as relações sem Luz como foco tiveram destaque, como o episódio onde Willow faz amizade com Hunter, Gus lidando com suas crises de pânico, e até um episódio onde descobrimos sobre Eda e sue ex, Raine, personagem não binárie da série, líder do coven dos bardos e parte essencial para revolução. Havia mais a explorar no mundo e para a melhor construção do enredo do que as interações de Luz com seus amigos e até com sua ‘irmã postiça’, mesmo tendo belos motivos é um dos poucos lados ruins do especial. O desejo de aproveitar mais cada momento antes da inevitável despedida de todos esses personagens e deste universo.
Um enredo apresentado no piloto tem toda a sua chance de brilhar quando os autores do especial dão perspectiva para a Senhora Noceda. A um primeiro olhar, Camila não apoiava a filha em seu modo de ver o mundo, e por isso está a enviando para o acampamento para lhe endireitar. Ao longo da primeira temporada a ideia de que ela não aceitava o jeito de ser da filha prevalecia na mente da maioria das pessoas do fandom. Foi na segunda temporada quando pudemos mergulhar mais fundo na relação complexa de Camila com Luz, mas dando uma luz (perdoem o trocadilho) totalmente nova às motivações de Camila, fazem muito mais sentido após esse especial. E a primeira de três partes do final de A Casa Coruja permanece sendo uma obra especial, como nada igual em termos de design, narração, dublagem e representatividade, deixando os fãs ansiosos para o que está por vir e a pendente finalização.
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Cineasta graduade em Cinema e Audiovisual, produtore do coletivo artístico independente Vesic Pis.
Não-binarie, fã de super heróis, de artistas trans, não-bináries e de ver essas pessoas conquistando cada vez mais o espaço. Pisciano com a meta de fazer alguma diferença no mundo.