Pinóquio de Guillermo del Toro – Ainda é possível reconstruir clássicos

É inegável a força da contribuição cultural – para o bem ou para o mal – que os Studios Disney vem fazendo ao longo de tantas décadas, desde que lançou sua primeira animação, Branca de Neve e Os Sete Anões (Snow White And The Seven Dwarfs, 1937). De lá pra cá, ela se tornou uma referência tão marcante em relação aos contos de fadas que eu sou capaz de apostar que as únicas versões que você conhece de muitos personagens infantis são, justamente, as que o estúdio eternizou em seus desenhos.

É praticamente impossível não ter na mente a imagem da Aurora, da Cinderela, da Rapunzel ou do Peter Pan, que não sejam aquelas que a Disney nos deu, muito embora elas não sejam bem a representação daquilo que os autores das obras usadas como base tenham pensado para seus heróis e suas princesas – e nem os enredos e desfechos, de certo.

Dadas estas circunstâncias, eu só posso imaginar o quão hercúleo deve ser o trabalho de algum outro diretor que queira recontar qualquer uma dessas histórias sem cair na armadilha de ter seu trabalho comparado com aquilo que a turma do Mickey tenha feito anteriormente. Mas, parece que para Guillermo del Toro, essa tarefa não é impossível.

Muito embora del Toro tenha levado mais de uma década para conseguir finalizar o que ele mesmo acredita ser sua obra prima, Pinóquio (Guillermo del Toro’s Pinocchio, 2023) é atual como poucas animações da Disney conseguiram ser e não perde em nada (aliás, vence magistralmente) quanto ao encanto que uma animação de um personagem, tão clássico quanto o formato em que foi trazido pelo diretor, poderia imaginar.

O enredo não é novidade: acompanhamos Gepeto (voz de David Bradley), um senhor de idade avançada, viúvo, que perde seu único filho, Carlos (voz de Alfie Tempest), um garoto de 10 anos, em um ato “acidental” de guerra (a história se passa na Itália durante a Segunda Guerra Mundial). Inconformado e inconsolável, o artesão constrói um boneco de madeira a partir do carvalho que cresceu ao lado do túmulo do garoto, proveniente de uma pinha que o jovem havia coletado na floresta.

Sentindo uma profunda compaixão pelo homem, o Espírito da Floresta (voz de Tilda Swinton) concede vida ao boneco para que ele seja filho de Gepeto e que lhe traga de volta a vontade de seguir adiante. Nasce Pinóquio (voz de Gregory Mann), um boneco de madeira, vivo, com a curiosidade e a inocência que nós, adultos, sentimos tanta falta em nós mesmo depois que envelhecemos.

Dentre as muitas coisas boas que podem ser ditas a respeito deste tesouro em forma de filme, talvez a principal delas é que, em conjunto com sua qualidade gráfica incrível, o Pinóquio de Guillermo trata, de maneira ao mesmo tempo delicada e voraz, de temas que nos são muito caros para a vida: morte, nascimento, perdão, descoberta e, como todas as boas histórias o fazem, amor.

E não o amor romântico, dos casais apaixonados. Mas o amor puro de uma criança pelo seu próprio pai. Não apenas representado pelo protagonista, o que já seria mais do que suficiente, mas também encarnado na relação entre o amigo do boneco e seu pai militar, severo, que a tudo critica pois não entende a sensibilidade do próprio filho, a quem ele deseja ser soldado; na fidelidade de Spazzatura ( voz de Cate Blanchett), o macaco adestrado de circo, que faz tudo que o mestre manda, a despeito dos maus tratos que sofre; e, claro, do próprio Gepeto, que nunca conseguiu superar a perda do filho.

Del Toro nos mostra a mais dura rejeição que uma criança pode sofrer, apenas por ter feito “coisas de criança”, e como podem ser severas as palavras de um adulto, principalmente quando esse adulto é alguém a quem a criança ama – o que nos faz refletir sobre a maneira como tratamos os nossos próprios pequenos, em nossos acessos de fúria. 

Pinóquio é uma animação que te acolhe, encanta, ao mesmo tempo que te faz indignado, triste e melancólico. Ela filosofa sobre morte e sobre renascimento. Uma animação que mostra a força que o amor de uma criança tem para transformar até o mais pesaroso coração.

E não obstante a força abstrata que a história traz, é impossível deixar passar o trabalho técnico que envolveu toda a produção. Uma animação em stop motion que custou 35 milhões de dólares e precisou ser gravada em 60 ilhas de filmagens diferentes, ao mesmo tempo. Do contrário, cada dia de 12, 14 horas de trabalho teriam rendido apenas 2, ou, quando muito, 3 minutos de película. Uma fotografia impecável e canções que te levam do céu ao inferno.

A versão de Pinóquio de Guillermo del Toro está na Netflix desde 9 de dezembro, juntamente com um making of de 30 minutos, repleto de curiosidades sobre a produção. Provavelmente uma das melhores animações que você vai ver este ano e, com toda certeza, a melhor que você vai ver sobre o menino feito de madeira.


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