“Quanto a nós, é espiritualmente, da fé, que aguardamos a justiça esperada.” Gálatas 5:5″
No ano de 1889, na cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, a beata Maria de Araújo recebe a santa hóstia, em comunhão dada pelo Padre Cícero Romão Batista. Porém, antes que ingerisse o sagrado Corpo de Cristo, a partícula transfigura-se em sangue, causando espanto imediato em todos os presentes naquela missa e nas outras dezenas que se seguiram, onde o dito milagre seguiu acontecendo por quase dois anos. Logo uma comissão de inquérito foi instituída pelo então bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira, para investigar o suposto milagre de Juazeiro. Formada por dois padres, um médico e um farmacêutico, a comissão concluiu em outubro de 1891 que não havia explicação natural para o fenômeno, o que não satisfez o bispo que organizou um novo grupo para avaliar melhor a situação.
A segunda comissão, diferente da anterior, chegou a conclusão de que a transfiguração da hóstia, bem como as misteriosas chagas que apareciam frequentemente na beata, não passariam de um embuste, acarretando na ordem de suspensão das ordens sacerdotais do Padre Cícero e da prisão de Maria de Araújo. Entretanto, mesmo com as negativas do clero oficial, as notícias do Milagre de Juazeiro já haviam se espalhado e alcançado a fé de vários cristãos das mais variadas regiões do Nordeste brasileiro, e até hoje a cidade é um dos maiores pontos de peregrinações de fieis – os chamados romeiros – do mundo, recebendo anualmente centenas de pessoas à fim de pagar promessas devidas ao Padre Cícero e à Beata Maria e admirar as relíquias derivadas do tal milagre, numa demonstração impressionante de religiosidade e, acima de tudo, fé.
Essa história do Milagre em Juazeiro sempre me despertou enorme curiosidade e fascínio. Criado em família católica e tendo presenciado várias e várias missas durante minha infância, é comum vir a minha mente a lembrança de uma certa frase dita pelo padre nessas ocasiões ao apresentar de cima do altar para os fiéis a hóstia sagrada: “eis o mistério da fé”. Essa lembrança talvez me venha – mesmo que hoje não siga nenhuma religião e muito pelo contrário seja um grande crítico das igrejas como instituições – de um maravilhamento quase ancestral, um encantamento pela capacidade humana de crer em algo que não necessita de nenhuma explicação racional, de provas factuais, um tema remexido por filósofos das mais diferentes correntes ao longo dos tempos e que permanece como iniciou, um mistério.
Baseado no livro de Emma Donoghue, O Milagre (The Wonder, 2022), novo filme dirigido pelo talentoso Sebastián Lelio conta uma história que se passa anos antes do Milagre de Juazeiro e bem longe do Cariri cearense, em um pequeno vilarejo no interior da Irlanda em 1862. Lá um comitê escolhe uma freira e uma enfermeira inglesa para investigar um suposto milagre que parece estar ocorrendo em uma humilde família do lugar. Alega-se que uma adolescente consegue viver normalmente e aparentemente saudável sem se alimentar há quatro meses, segundo ela mesma ingerindo apenas o “maná do céu”, através de sua forte fé em Deus. O filme inicia nos convidando diretamente a acreditar, a ter fé, na história que iremos assistir, pois “nós não somos nada sem histórias”, e é nesse mote, tão sensível na vida de todos nós, que está a enorme força deste filme.
Ornado por uma cuidadosa fotografia (da incrível Ari Wegner) que emula as sombras e a iluminação dos grandes mestres da pintura barroca, o filme acompanha as duas semanas em que a enfermeira Elizabeth Wright (Florence Pugh) – uma mulher com um passado que a consome física e espiritualmente – convive com a jovem Anna (Kíla Lord Cassidy) buscando entender o mistério que a cerca. O ceticismo inicial da enfermeira logo dá espaço a uma preocupação quase maternal com a menina, o que a impele ainda mais a tentar desvendar o que acredita se tratar de uma farsa. Mas não é pela lógica que um milagre deve ser analisado, já que a fé não depende de nenhuma racionalidade, e o mistério do fenômeno sobrenatural que envolve Anna perpassa o campo da crença. Mas será que apenas isso é o bastante?
Florence Pugh aqui mais uma vez demonstra que é realmente um dos grandes nomes de sua geração, com uma interpretação necessariamente fria e introspectiva, apática e expressiva na medida quando precisa, como nos vários planos em que aparece realizando uma refeição que parece a saciar, mas não a satisfazer, ou em suas interações com Anna, da novata Kíla Lord Cassidy que também não deixa de impressionar. Além disso é impossível não destacar a trilha musical de Matthew Herbert, que irradia o mistério e a espiritualidade da trama.
Circundando a complexidade do tema como um verdadeiro thriller psicológico, cheio de simbolismos e esteticamente primoroso, O Milagre não está interessado em trazer respostas, muito pelo contrário, quer nos fazer refletir sobre a forma como lidamos com nossas crenças, nossas angústias e como infelizmente ainda vivemos em uma sociedade que não difere tanto à daquela vila irlandesa de meados do século XIX.
Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.