O nascimento do cinema de Tang Yi

Em entrevista a revista Tatler, a diretora honconguesa Tang Yi relata que se surpreendeu ao ser aceita na Tisch School of the Arts de Nova York, pois enquanto seus colegas respondiam Fellini e Kar Wai como referências cinematográficas, ela respondeu “Ben Stiller. Ele é a única pessoa que poderia fazer David Bowie julgar as roupas íntimas de dois modelos masculinos e escalar Tom Cruise careca, dançando em Trovão Tropical. Eu queria fazer isso. No fundo, eu sou uma grande maluca.”

Vencedora da Palma de Ouro de Curta-Metragem no Festival de Cannes 2021 com o filme Tian Xia Wu Ya (All The Crows In The World, algo como “Todos os Corvos do Mundo” recém estreia na plataforma Mubi), uma comédia obscura que conta a história da adolescente Shengnan (Xuanyu Chen) rodeada por homens alambicados de misoginia. Dada oportunidade, foge com a pessoa mais dessemelhante da roda varonil e segue ao encontro de novas percepções na cotidiana Hong Kong.

Os excessos do filme, desde a montagem até os gestos, podem causar estranheza. Contudo, tais excessos se transformam em dois sentidos: 1) uma alusão à própria narrativa do filme, repleta dos excessos masculinos como bando de corvos. A denúncia descontraída (de uma personagem contraída) do androcentrismo como argamassa na construção da sociedade que há poucos anos condenava mulheres portando camisinhas e reprimia legalmente homossexuais. 2) a construção da identidade de Tang Yi como diretora, apostando numa assinatura envolvendo absurdos sutis, desenvolvimentos insinuantes e personagens mulheres inseridas na reflexão social em narrativas chiaroscuras.

Seu primeiro curta em 2019, Black Boat (Cabra Negra), já indicava desde estudante as suas vontades como realizadora e contadora de histórias. Após escutar histórias de fantasmas no mosteiro onde reside, Pasang (Pasang Dalma) tem sua primeira menstruação e acredita estar amaldiçoada. Através de um rumor, busca matar uma cabra preta como tentativa de se livrar da “maldição”. Existe uma aptidão em Tang Yi em tocar em assuntos sérios através de toques engraçados, sem ofuscar ou escarnecer os temas. Pelo contrário, reforça com brio sua naturalidade em lidar com a tragicomédia, um dos gêneros mais difíceis de escrever e dirigir.

Esse ano dirigiu uma produção Vogue. O curta Yokelan, 66 narra os devaneios amorosos de uma viúva dançarina em sua plena terceira idade. Transbordando quebras de expectativa em ótimo humor, exageros de planos que flertariam com qualquer esquete inteligente de Tatá Werneck, as rupturas criadas nos intervalos de seus momentos também abrem as incertezas da solidão. O filme está disponível no canal oficial da Vogue China no YouTube.

Mais uma vez, Tang Yi. Guardem esse nome. A Palma de Ouro ano passado não foi seu auge. “Todos Os Corvos do Mundo” está se preparando para ser um longa-metragem. Não será exagero daqui a uns anos vermos seus filmes ganharem os sorrisos e reflexões nas salas de cinema do mundo todo.

Aliás, esse será mais um saboroso exagero.


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