Não! Não Olhe! – Alma de terror B em um filme classe A

Com apenas dois filmes, Corra (Get Out, 2017) e Nós (Us, 2019), Jordan Peele ganhou um Oscar, milhões em bilheteria e prestígio o suficiente a ponto de transformar seu nome numa grife, tanto perante o público quanto à crítica. Com obras profundamente calcadas no terror, com pitadas de humor e forte comentário social, ele vem moldando um estilo único e eu, particularmente, o considero, ao lado de Mike Flanagan (diretor de Jogo Perigoso, Doutor Sono, A Maldição da Residência Hill, entre outros), atualmente, as duas vozes masculinas mais importantes do gênero. Não é surpreendente, então, que cada novo projeto de Peele gere comoção, e com Não! Não Olhe! (Nope, 2022) não seria diferente. Cercado de mistério desde o título – a versão em português, apesar de ter relação com uma atitude essencial dos personagens no decorrer da trama, não dá conta dos temas e do suspense que o filme provoca –, Não! Não Olhe finalmente chega até o público se revelando tão familiar ao cinema de Peele quanto diferente de suas outras obras. 

Em relação aos filmes anteriores do diretor, Não! Não Olhe! não é tão fundamentado em uma revelação que altere nossa percepção da história. Ainda assim, para evitar o que podem considerar spoilers, vou me ater ao básico: os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Em (Keke Palmer) são parte de uma família de tradicionais criadores de cavalos treinados para servirem em filmagens em Hollywood. Após a morte bizarra do pai, eles ficam responsáveis pelo rancho da família e, além de terem que lidar com a gradual substituição de animais verdadeiros por efeitos computadorizados (o que, obviamente, torna o trabalho deles obsoleto), eles precisam dar conta de uma misteriosa ameaça possivelmente alienígena que ronda o lugar.

Com essa premissa, Peele faz uma grande homenagem ao cinema dos anos 1950, emulando toda uma aura de ficção científica B, com o humor característico do seu trabalho, aliado a sequências de um horror quase gótico, até mesmo lovecraftiano. Nessa mistura, ele ainda encontra tempo para criticar a indústria do espetáculo e a relação homem-animal, no que diz respeito ao adestramento deste. No entanto, em um ponto que diverge de seus filmes anteriores, as críticas sociais presentes em Não! Não Olhe! não assumem um ponto tão central. Isso não diminui a relevância delas, mas tira um pouco da força que elas poderiam ter, pois parte do discurso se torna raso, muito devido à falta de equilíbrio entre as diferentes críticas entre si, como dessas e o terror. Isso não chega a prejudicar a experiência que o filme é – e, acredite, É uma experiência de terror contundente – mas impede que ele atinja o status que seus dois filmes anteriores atingiram, seja o suspense psicanalítico de Corra ou o horror social de Nós

Por outro lado, o domínio do horror que o diretor apresenta está cada vez mais afiado e, com isso, ele traz sequências absolutamente aterrorizantes, algumas de uma beleza de tirar o fôlego. A fotografia, particularmente, usa de grandes espaços abertos e do próprio céu – muitas vezes extremamente azul e límpido, em outros momentos repleto de nuvens – para causar uma tensão e um senso de ameaça de deixar o espectador à beira da cadeira. Enquanto isso, o desenho de produção brinca com uma mistura de estéticas que remetem tanto à ficção científica B da metade do século passado – principalmente no design da ameaça – como ao horror gótico e aos faroestes do mesmo período, com Peele casando tudo com grande habilidade. 

Porém, não é somente a segurança com que o diretor filma e todo o controle cênico que ele possui, mas também o trabalho de um elenco completamente comprometido que contribuem para que o clima da obra funcione. Todos estão bem em seus papéis: Keke Palmer às vezes quase cai na caricatura, mas segura bem os momentos mais tensos e dramáticos, enquanto Steven Yeun, mesmo com pouco tempo de cena, consegue dar profundidade ao seu personagem. Quem se destaca, no entanto, é Daniel Kaluuya, com um personagem que, inicialmente, parece não transmitir o suficiente para simpatizarmos com ele, mas que, no decorrer da trama ganha substância e mostra mais um excelente trabalho do ator.

No final de tudo, apesar do filme sofrer com o desequilíbrio entre ser um conto de terror cósmico e as críticas que não se desenvolvem plenamente, o saldo final é extremamente positivo. Mais uma vez, Peele se apropria de sua bagagem de referências – enquanto ele trazia muito do cinema de paranoia decorrente da Guerra Fria, como As Esposas de Stepford (The Stepford Wives, 1975) e Invasores de Corpos (Invasion of the Body Snatchers, 1978) em Corra –, Não! Não Olhe!, assim como Nós, poderia muito bem ser um episódio perdido de Além da Imaginação (The Twilight Zone, 1959-1964). O melhor de tudo é que ele se apropria disso para criar, de fato, obras que não só copiam essas referências, mas que dialogam com elas e trazem um olhar único e específico, recriando-as. Com isso, fica a esperança que o sucesso obtido por Peele permita que outras vozes diversas – negras, LGBTQIA+, femininas – encontrem seu espaço e mostrem que ainda há muito a ser dito através da arte.


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