Nada De Novo Sob o Sol do Sertão – Você está com aquela doença: o sonho!

Nos dias 02 e 03 de junho, o diretor e ator Alcântara Costa e o Coletivo Rei Leal levaram ao Teatro José de Alencar a peça inspirada no texto do dramaturgo João Denys Araújo Leite, premiado em diversas adaptações teatrais: o famoso Deus Danado (1993). Esta que faz parte da Trilogia do Seridó, junto com Flores D’América (2005) e A Pedra do Navio (1979).

No recorte de Alcântara Costa, o padrinho e afilhado travam uma relação de violência e afeto num sertão abandonado por (des)devaneios. Carregada de simbologia sertânica que se contrasta nas sombras da alma repleta de gritos do flagelo da seca e sorrisos na esperança de botijas. Nela, há um trecho curioso, porém típico, sobre a criação do mundo que ajuda a entender as sensações humanas no tablado.

O padrinho conta para o rapaz a origem do mundo. Que antes de tudo não existia nada e até Deus antes de ser Deus era “invisível”. E foi ele quem criou a terra rachada de xique-xiques. Esse abandono demiurgo reflete universalmente nos elementos da peça, não só na desproteção da situação, mas na demissão do caráter que abre caminho para a violência frente à condição humana. Os picos de alegria são apagados pelo desleixo da melancolia, os prazeres selvagens desembestados sem as rédeas da empatia e a consciência desalienada da necessidade. Se esse Deus tudo criou, esse mesmo desamparou?

Essa orfandade tal qual o conceito grego Deus Uraniano, Aquele que cria e some. Que se faz luz, mas não participa e interage com sua criação. E quando retorna, é para engoli-lo. A próxima geração, liderada por Zeus, Poseidon e Hades, justifica o pecado humano porque homens foram feitos das cinzas dos Titãs e herdam assim o pecado original dos deicidas.

Os babilônios já discutiam o pecado em semelhança. Acreditavam que os homens tinham o mesmo sangue do um Deus defeituoso Kingu. Um Deus danado e exilado, justificando a corrupção humana de nascença.

Algumas lendas africanas também atribuem o abandono de Deuses. O historiador George Minois através da Encyclopédie des Religions (Lenior & Tardan-Masquelier, 1645) conta que

“Um mito de Ruanda conta que, antigamente, um deus habitava próximo aos homens, numa grande cabana, mas que estes não tinham o direito de vê-lo. Assim, uma noite, a jovem que tinha o costume de lhe levar água e lenha, por curiosidade, se escondeu para ver o braço do deus pegar a cabaça cheia de água. Ela vê, mas o deus sabe de tudo e imediatamente anuncia que vai embora, levando consigo a felicidade. Então, “a morte fez sua entrada, e [com ela] outras misérias”.

(A Origem do Mal. São Paulo. 2021.)

Seja legitimada por herança ou necessidade, o historiador Frederico Pernambucano de Mello discorre sobre a violência na formação do Nordeste:

“Uma vez canalizada para a violência, a energia humana permanece gerando violência ainda por muito tempo, mesmo quando os inimigos naturais que foram responsáveis pelo seu surgimento já não existam. Quando isto ocorre, o que se dá é uma reorientação do sentido dessa violência em busca de rumo diverso e não seu amortecimento súbito. Quanto mais demorada tenha sido a fase cruenta de um processo de colonização, tanto mais duradoura se mostrará, via de regra, a permanência dos hábitos violentos, numa fase em que racionalmente já não mais se justificam.”

(Guerreiros do Sol. São Paulo. 2004)

Nada de Novo Sob o Sol do Sertão, tal aos moldes dos cordéis, coloca Adão nas luzes do Tribunal, onde o sertanejo pecador pode ser culpado por ser fruto do pecado original de seus semelhantes ou o translado dessa culpa retorna para domínios divinos na sua gênese fuga que somente voltam quando a Caetana chega ao final da vida de todos os homens.


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