Shangri-La – Não existe sonho americano

“Sou uma com as estrelas. Sou a lua e o sol. Sou o universo inteiro. Sou magnífica, invencível, sublime. Vou amar quem eu quiser, e meu amor será retribuído”, declama a protagonista no silêncio de sua posição fetal.

Shangri-La (2021) é um filme da filipina Isabel Sandoval que apresenta uma espécie de confissão de uma imigrante asiática sobre seus desejos reprimidos em meio a Grande Depressão da Califórnia, pois entre 1850 a 1948 existia uma lei californiana de antimiscigenação que proibia casamentos interraciais.

Em 10 minutos, o filme parece que baila – em forma de tratado – pela cinematografia dessa que adentrou nos belos canais por onde passou Veronica Franco e foi a primeira mulher trans de cor a competir no Festival de Cinema de Veneza. As trincheiras da mulher trans e cis na sociedade, o feixe de lenha das leis do Estado, a cacofonia do preconceito racial, são temas circulantes na feminilidade contemporânea que Isabel Sandoval faz questão de colocar ao sol, em céu aberto ou enevoado.

É no campo onírico que desenvolve seu discurso, que desenterra seus anseios, lapida seus impulsos no meio de sua apetitosa narração. É a tentativa dela sair dos portões da Califórnia e adentrar na mítica Shangri-La de James Hilton descrito no livro Horizonte Perdido de 1933. Uma terra mágica, fantástica, paradisíaca, provavelmente escondida nas montanhas do Tibete. Um lugar onde ela possa andar sobre o sol despreocupada com sua etnia, sexo ou gênero. Onde possa misturar o pó de estrelas com o suor das peles. Despir o outro. Onde possa travar batalhas justas de uma guerreira livre. Onde possa avistar os fogos de artifício onde cada explosão contorne as faces deitadas enquanto sua consciência vagueia solta dos grilhões da culpa. Sonhar sobre si. Despir-se.

Shangri-La é o drama de quem é arrancada de seu seio e atravessa trópicos e linhas no esforço de uma vida melhor. Que encontra no devaneio a única força para quebrar as algemas disfarçadas de laços. Porque pelo menos sonhar não devia ser um ato suprimido.

Mas sonhar com Shangri-La é a prova da maior realidade ocidental:

Não existe o sonho americano.

[O filme está disponível na plataforma MUBI]


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