“Eu não sabia que o queer era uma opção.”
E em bem verdade, sabemos que de fato não é. Desde nossa infância somos impostes a sermos binários, obrigades a performar um ideal de binariedade criado pela própria binariedade. Fugir disso não é bem uma opção. Porque ser não-binário não é e nem nunca foi uma opção. No entanto, se fosse nos dado a chance de escolhermos quem queremos ser, creio que muitos de nós, de cabeça erguida, escolheríamos a não-binariedade. Escolheríamos o “estranho” e acolhedor “mundo do queer”. Escolheríamos sermos nós mesmos. Nesse caso, não seria uma opção? Pois não somente o somos, mas o abraçamos e o vestimos, tal qual uma armadura para lutarmos dia a dia pela nossa sobrevivência, enquanto humanos, enquanto pessoas trans. E é exatamente isso que a websérie documental Como Existir Sem Ser Binária (2021), dirigida por Eric Magda, busca contemplar e glorificar: a nossa existência.
Através de entrevistas concedidas por três integrantes da casa drag Covil das Banidas, ês realizadores convocam ês espectadores a uma reflexão sobre os espaços a serem ocupados por pessoas trans não-binárias e suas batalhas diárias rumo ao reconhecimento, respeito e acolhimento por uma sociedade que por vezes nos é cruel e desdenhosa. Renate Coelhe, Levi Banida e Nanda Banana relatam seus processos, suas questões e suas críticas diante de vivências e experiências únicas que lhes moldaram e ainda lhes moldam não somente como artistas, mas como pessoas, e a busca constante para que suas vozes sejam ouvidas. E, sem dúvidas, serão.
“Em cima de um jornal dorme um corpo desigual.”
“O carinho transforma.” Renate Coelhe, com um sorriso sincero no rosto e sua voz aveludada, no primeiro episódio da websérie decide confortar o espectador. Como um abraço caloroso de alguém que nos ama a dizer “vai ficar tudo bem”. Antes de contar o processo de seu descobrimento como pessoa trans, Renate afirma querer começar falando sobre o afeto e o auto amor. Em meio a cortes mostrando ê entrevistade se maquiar, elu comenta sobre a importância da autoaceitação e sobre como o carinho possui um poder transformador nesse processo tão único de descobrimento. E, em determinado momento, Renate decide presentear o espectador com sua poderosa voz, cantando a belíssima Uma Canção Pra Você (Jaqueta Amarela) da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, música profunda sobre vivências trans que não poderia caber melhor dentro do contexto de Como Existir Sem Ser Binária.
“…que a minha arte drag, para além de ser um espaço de encantamento, também é um espaço de enfrentamento. Do mundo, da binariedade, da estaticidade de gênero e das violências que vinham até mim.”
O processo de Levi Banida para se perceber como uma pessoa “desobediente de gênero” foi entrelaçada ao Teatro, à arte do corpo. Nesse segundo episódio, enquanto se maquia, Levi traça um bonito e curioso paralelo entre sua trajetória na contação de história e no teatro infantil com o fazer drag que hoje em dia se mostra intrínseco e fundamental para sua vida. Cortes de performances realizadas por Levi são costurados durante sua fala, e como uma boa contadora de história, relata com precisão e um quê de ironia alguns momentos de sua vida que lhe fizeram entender a necessidade de utilizar sua arte não apenas como refúgio, mas como um próprio dispositivo de enfrentamento e de resistência.
“Então eu performava constantemente uma obrigação de estranheza a algo que nem me era referencial que é a binariedade.”
Com um tom mais incisivo em seus questionamentos e apontamentos, Levi Banida dá continuidade à sua fala no terceiro episódio de Como Existir Sem Ser Binária. Em uma denúncia nada sutil, Levi comenta sobre a necessidade que a cisgeneridade impõe a pessoas não-binários de sempre performar algo estranho aos padrões binários criados pela própria cisgeneridade. A violenta obrigação de trans não-binários de provar sua não-binariedade a partir de um performar andrógino que por vezes não é de sua escolha. E diante disso, conta sobre o surgimento do Covil das Banidas e seu objetivo enquanto casa drag: desafiar dentro do fazer drag os padrões de gênero.
“Então quando eu queria fazer a minha drag, não era sobre um homem que se transforma em uma mulher. Era sempre sobre expressar o que tem dentro de mim.”
“E hoje estou aqui. Sou artista, sobrevivi. Mas… sobreviver não é a melhor forma de estar no mundo. Eu quero ser livre.” Por fim, no quarto e último episódio, somos apresentades a Nanda Banana. Ou como ela mesma sugere, Nanda Banana Nascida Banida Profana Bandida. Montade em toda sua exuberância e de gesticular quase dançante, ela compartilha seus desafios e experiências enquanto drag e transmasculine periférica e negra, buscando ilustrar suas referências – estas bem distantes do glamour que se imagina do mundo drag: suas amigas, na sarjeta, nas calçadas das ruas, com a maquiagem derretida e uma ou outra peça de sua vestimenta faltando – e falar sobre todo o apoio que recebe de suas irmãs drags e dos processos para criar um espaço que coubesse a si e sus semelhantes na cidade
“…porque nenhuma vida trans merece ser somente os reflexos das mortes trans. Isso é muito cruel. Muito cruel o que fazem e o que obrigam da gente a sempre estar num espaço de martírio, de profunda convalescência, condolência, porque isso mata aos poucos também. Se a nossa vida, se a nossa existência é pautada na morte de outres como nós, a nossa vida é um definhar.”
Como Existir Sem Ser Binária é reflexivo, contundente e sensível. Muito além de uma série de entrevistas, é um mergulho em experiências pessoais, relatos e indagações que envolvem a existência de um grupo de pessoas infelizmente ainda marginalizadas, mas que lutam dia após dia para serem reconhecidas e valorizadas na sociedade. É o grito de resistência que precisa ser ouvido para que de vez sejamos livres para sermos quem somos sem temer. A expressão “corpo dissidente” surge vez ou outra nas falas das entrevistadas. Nós o somos. Somos esse corpo dissidente, desobediente, que não aceita imposições, que não se cala nem se dobra ou se retorce para caber em uma ideia de cisnormatividade e binariedade. Somos andrógines, somos “masculines”, somos “feminines” ou o que quisermos ser ou o que de fato somos. Estamos aqui e existimos. Celebremos nós que estamos em vida. Então um brinde a nossa existência e um brinde a nós, não-binários.
Assista a websérie aqui no canal da Vesic Pis no YouTube.
VEJA TAMBÉM
Escritore, estudante de Cinema e Audiovisual, Diretore de Arte, Roteirista e integrante do coletivo independente Vesic Pis. Para o desespero da sociedade, não-binárie e, pior, terrivelmente canceriane. Apreciadore de punk rock e música eletrônica duvidosa, dedica seu tempo a tentar terminar as leituras iniciadas, assistir filmes e séries com muito gore, ouvir podcasts sobre crimes reais e política e cuidar de um papagaio possivelmente homofóbico.