O fim dos anos 60 marca um período extremamente conturbado na Irlanda do Norte. O país vivia o desenrolar de uma série de conflitos político-religiosos envolvendo grande parte da sua população protestante, de acordo com a manutenção do domínio britânico no país, e outra parcela de católicos, favoráveis ao rompimento com o Reino Unido e uma união com a República da Irlanda, independente desde os anos 20. Com ataques dos revoltosos protestantes às residências e aos comércios de católicos o país chegou praticamente a entrar em uma violenta guerra civil que perduraria ainda por 30 anos até que se firmasse um acordo de paz entre às nações envolvidas.
Belfast (2021), que tem no título o nome da capital norte-irlandesa, se passa no início desses conflitos, em 1969, mas do ponto de vista de um jovem garotinho de origem protestante que vivia com sua família em um bairro misto, onde também habitavam várias famílias católicas e em cujas ruas aconteceram vários dos embates que permearam esta guerra. E é sempre interessante pensar grandes conflitos pelo olhar infantil e inocente de uma criança, algo que já vimos em inúmeras obras, algumas mais recentes como JoJo Rabbit (2019), A Menina Que Roubava Livros (The Book Thief, 2013) e O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), e outras clássicas como Império do Sol (Empire of the Sun, 1987), A Infância de Ivan (Ivanovo Detstvo, 1962) e Alemanha, Ano Zero (Germania Anno Zero, 1948). Como elas lidam com aqueles eventos tão violentos e chocantes? Como aquela experiência marca para sempre suas vidas?
O diretor Kennet Branagh, também responsável pelo roteiro do filme, passou alguns anos de sua infância vendo de perto o início desses conflitos em Belfast, onde nasceu, e seu novo filme é, claramente, uma volta a este passado, quase um autobiográfico aos moldes de Roma (Rome, 2018), de Alfonso Cuarón. Sabendo disso fica clara a intenção do cineasta, não só em revisitar sua própria infância em Belfast, mas também refletir sobre como aqueles anos de sua vida impactaram em quem ele é hoje. Dito isto podemos afirmar que este é facilmente o filme mais pessoal do diretor, acostumado a comandar adaptações de obras clássicas da literatura desde Shakespeare à Agatha Christie, Belfast é certamente o filme onde Branagh mais sai de sua zona de conforto, já que se baseia apenas em suas próprias memórias e em nenhuma obra literária.
E é apostando na sensibilidade que o diretor consegue nos conectar instantaneamente ao jovem e apaixonado Buddy (Jude Hill), que se esforça ao máximo para entender o que acontece ao seu redor, e em como diferenciar católicos e protestantes, já que a olho nu ambos parecem exatamente iguais. É do ponto de vista dele, sempre à espreita ouvindo as conversas dos adultos, que percebemos que o medo da mudança é algo que aflige não só as crianças, mas também seus pais. Como pensar na possibilidade de deixar o mundo em que sempre viveu, rodeado de pessoas conhecidas desde várias gerações anteriores, para ir a outro lugar desconhecido, alienígena, tão distante quanto a lua, onde naquele mesmo ano o astronauta Neil Armstrong havia deixado suas pegadas?
É bonito como o diretor usa a paixão de Buddy por cinema (provavelmente também uma paixão de sua própria infância) para ilustrar o olhar sonhador do garoto, como no duelo na rua em Matar ou Morrer (High Noon, 1952) ou no carro voador de Dick Van Dyke em O Calhambeque Mágico (Chitty Chitty Bang Bang, 1968), além da trilha musical, muitas vezes alegre e contagiante, quase toda com canções do também norte-irlandês Van Morrison. Mas é nas conversas com seus avós (uma interpretação comovente de Judi Dench e Ciarán Hinds) que o filme me pega de jeito, pois é ali que há os melhores conselhos, sejam amorosos, sejam em relação à difícil aceitação de um futuro amedrontador, mas necessário.
Em um de seus melhores e mais inspirados trabalhos na direção Kenneth Branagh nos revela uma íntima carta de amor ao seu passado e ao de muitas pessoas que viveram aqueles eventos cruéis, uma carta em tons de cinza e que por um lado pode ser bem triste, mas também traz boas e felizes lembranças. Um filme que nos lembra da importância de olhar para trás sempre que possível.
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Cineasta e Historiador. Membro da ACECCINE (Associação Cearense de Críticos de Cinema). É viciado em listas, roer as unhas e em assistir mais filmes e séries do que parece ser possível. Tem mais projetos do que tem tempo para concretizá-los. Não curte filmes de dança, mas ama Dirty Dancing. Apaixonado por faroestes, filmes de gângster e distopias.