Record of Ragnarok – Boa pancadaria com sérios problemas

Esse texto vai tratar de ambos formatos: mangá (até o momento capítulo 47) e animação (1º temporada), que estreou recentemente na vermelhinha Netflix. E, como sempre, sem nenhum spoiler sobre o decorrer dos fatos até o momento. Mas algumas coisas precisam ser ditas.


DO QUE SE TRATA?

Record of Ragnarok (do original “Shuumatsu no Walkürie/Valkyrie” que seria algo como “Final de Semana das Valquirias” uma alusão ao pequeno intervalo de tempo divino para uma gigantesca decisão para a humanidade) começa com uma reunião dos panteões divinos universais, tendo Zeus como seu condutor. Eles estão convencidos – em assembleia que acontece a cada mil anos – de destruir a humanidade e refazer a criação. Mas a Valquíria Brunhild os convence de seguir uma cláusula perdida do código divino que dá a oportunidade da humanidade solicitar um duelo de 13 contra 13. Pensando em se divertirem um pouco antes do apocalipse, os deuses aceitam, e ambos vão ao recrutamento de suas equipes.

QUAIS OS PRÓS?

Realmente, um dos pontos mais curiosos da obra é a curiosidade da releitura de grandes nomes que conhecemos, de ambos os lados. Ver as versões de Thor, Poseidon, Shiva e tantos seres celestiais com suas mirabilias e onipotências sempre gera curiosidade. Conhecer versões dos ícones como Li Bu, Buda, Jack – O Estripador, Adão e demais humanos é de encher os olhos. O design de personagem é bastante arrojado e cumpre o teor solicitado para a trama. E não pense que os holofotes ficam só para a arena: na plateia em ambas as torcidas, grandes nomes dão o ar da graça, em especial para a torcida dos humanos.

A troca incomum de alguns personagens surte ótimos efeitos, com destaque de deixar o incrível e conhecido Musashi assistindo a luta do coadjuvante e carismático Sasaki Kojiro. Trocar os antagônicos Sherlock e Jack nos fazem sentir uma boa sensação de imprevisibilidade.

As cenas de luta do mangá, escrito por Shinya Umemura e Takumi Fukui e ilustrada por Ajichika, tem fluidez e tiram o fôlego. As onomatopeias, mais exageradas do que o comum japonês, brigam com o espaço da página sem prejudicar a narrativa. Movimentos, anatomia, tudo em ordem ali para, quem sabe, uma completa desordem. Se tem uma coisa que o mangá garante é uma boa porrada naquela temática já conhecida por tantas obras nipônicas da humanidade se revoltando contra a decisão de seus deuses.

E OS CONTRAS?

Não vou me adentrar a precária animação feita pelo estúdio Graphinica na produção da Warner Bros. Japão. Não só de qualidade gráfica, mas de fluxo narrativo, com durações desordenadas. Também não vou me aprofundar nos clichês de torneios, o que não acho um problema.

Existem dois grandes problemas na obra como um todo, seja mangá ou animação, que podem ser resumidos em três palavras: invisibilidade e preconceito estrutural.

Em Shuumatsu no Valkyrie/Record of Ragnarok esquecem completamente (até o último capítulo vigente ao escrever esse texto) de outras mitologias. Ou melhor, de outras culturas que não sejam as nórdicas, gregas e asiáticas. Fora um Anúbis, as chaves divinas não tem nenhum representante das culturas africanas, americanas e oceânicas. Orixás, Tupãs, Quetzacoatls e Mauis são esquecidos até pelos bastidores, fazendo acreditar que a obra só reconhece aquelas abordagens que são mais típicas nas adaptações. É difícil acreditar num panteão que se diz “o encontro de todas as divindades do mundo” invisibilizando as culturas dos 2º, 3º e 6º maiores continentes do mundo, que representam geograficamente mais da metade do nosso planeta e demograficamente mais de 30% da população mundial.

Shuumatsu no Valkyrie/Record of Ragnarok fala que é  “universal”, mas o que enxergamos é só a típica exclusividade asio-europeia.

O segundo ponto talvez seja o mais alarmante, já que a obra trata de reunir os destaques do mundo divino e humano para um torneio, com suas entrelinhas e socos. Para isso, observem de início a escolha dos representantes de cada lado:

Já percebendo a falta dos elementos citados no primeiro ponto, o nosso segundo ponto indica a falta de representatividade feminina. Não existem em ambos os lados nenhuma Athena, Joana D’arc, Jovita, Hel, mesmo se restringindo ao mundo asio-europeu. Mesmo a obra contemplando as Valquírias como suporte divino para todos os combatentes da humanidade, só transfigura a falta de destaque que elas poderiam ter, substituindo suas utilizações somente em prol do protagonismo exclusivamente masculino. Nos combates, as Valquírias não lutam. Não tem seus momentos heróicos e solo. Elas são usadas/manuseadas. E por mais que essa utilização seja essencial para conquistar vitórias, elas são resumidas a instrumentos para as ações bélicas dos homens. Assim como na história da antiguidade clássica (que obstruía as mulheres, e quando não os faziam, dedicavam mais linhas escritas as amantes do que esposas), as Valkirias sequer são consortes de seus combatentes: são amantes escondidas atrás da virilidade aparente dos homens que as empunham. Os poucos momentos em que a obra oferece algo diferente disso é no início da história com a afronta de Brunhild a Zeus (ocasionando o torneio) e as poucas estratégias/narrações que ainda têm suas atenções divididas com demais personagens.

O que Shuumatsu no Valkyrie faz – e peca, pois infelizmente não é proposital e didático – é um reflexo da humanidade que já afirmava Umberto Eco no seu ensaio “As Histórias das Mulheres Esquecidas”:

“Mas a dúvida permanece: que influência Gemma teve sobre Dante, ou Helena sobre Descartes, sem contar o número enorme de esposas sobre as quais a história diz ainda menos? E se todas as obras de Aristóteles tiverem sido realmente escritas por Hérpiles? Nós nunca saberemos. A história, escrita pelos maridos, condenou as esposas ao anonimato.”

Leia o ensaio completo aqui.

VEREDITO

Shuumatsu no Valkyrie/Record of Ragnarok é aquela obra nipônica com boas lutas e curiosas concepções visuais. Porém somente mais uma obra asio-europeia varonil. Espero que mude.


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