Em 1977, quase sem querer, George Lucas trouxe à vida não apenas uma das aventuras espaciais mais amadas de todos os tempos, mas uma galáxia inteira de planetas não explorados, histórias não contadas e possibilidades infinitas. Mesmo quem não é fã de Star Wars precisa reconhecer que potencial é algo que nunca faltou à série, e apesar de os níveis de sucesso serem ao mesmo tempo variados e questionáveis, esse potencial vem sendo consistentemente explorado em todas as mídias disponíveis, de séries de TV a histórias em quadrinhos, e claro, jogos de videogame.
Ao longo das décadas, mais de 140 jogos de Star Wars foram lançados, para praticamente todas as plataformas que já existiram – variando em gênero, temática e obviamente em qualidade -, mas a verdade é que poucos desses jogos são memoráveis para além do fator nostalgia. Foi o lançamento de Knights of the Old Republic em 2003 – uma obra prima da BioWare e um dos melhores jogos de RPG já criados – que colocou pela primeira vez um jogo de Star Wars na lista de títulos essenciais para fãs de videogame, ao mesmo tempo que criou um padrão de qualidade extremamente difícil de alcançar.
Depois da aquisição da Lucasfilm – e com ela todos os direitos sobre conteúdo de Star Wars – pela Disney, a responsabilidade de produzir novos jogos dentro desse fabuloso e ainda amplamente inexplorado universo, e ao mesmo tempo tentar alcançar o nível de relevância que KotOR alcançou, caiu em cima da EA, e como já era de se esperar, o começo dessa nova fase foi extremamente turbulento. O descarte arbitrário do universo expandido existente antes da aquisição já abria o caminho pra uma situação complicada: com as regras sendo restabelecidas, a criação de conteúdo novo se torna um inevitável campo minado, e a EA acabou escolhendo o caminho seguro do reboot, refazendo a série Battlefront do começo para acomodar o novo canon.
Apesar da qualidade técnica e visual dos jogos, e por mais divertidos de jogar que eles sejam, Star Wars: Battlefront (2015) e Star Wars: Battlefront II (2017) trouxeram pouca ou nenhuma inovação de roteiro e jogabilidade, e o foco no multiplayer acabou privando os fãs de alguns dos maiores atrativos que a franquia tem a oferecer, que são a aventura da exploração e a própria expansão do universo através da contação de novas histórias. Assim, o lançamento de Star Wars Jedi: Fallen Order (2019) foi o momento que a EA – que estava ainda no processo de reparar o dano causado pelo fiasco das microtransações em Battlefront II – teve para se redimir.
Com um título de peso como Star Wars, e às vésperas da estreia da última parte da nova trilogia cinematográfica, as falhas passadas da produtora não foram suficientes para impactar o lançamento, e Fallen Order se tornou um sucesso imediato de vendas. Apesar disso, o jogo rapidamente caiu das graças do público, recebendo críticas tépidas e sendo eventualmente soterrado por outros jogos de maior impacto lançados desde então, não necessariamente por se tratar de um jogo ruim, mas simplesmente por não ser o jogo de Star Wars pelo qual o público tem esperado há tanto tempo.
De um ponto de vista técnico, Fallen Order é um jogo extremamente mediano. Apesar de relativamente bem executados, quase todos os elementos do gameplay – do level design ao combate – são emprestados de outros jogos. Isso por si só não é necessariamente uma coisa ruim, mas acaba transparecendo um certo descuido com a produção: o título de Star Wars é usado como escudo, e espera-se que fanservice, sabres de luz e o uso da Força sejam suficientes para tornar a experiência interessante, e que o jogador ignore a ausência de inovação nas mecânicas de jogo.
Assim, o jogo combina combate, XP e sistema de save no estilo Sekiro/Dark Souls, puzzles no estilo Tomb Raider, platforming no estilo Uncharted, inimigos no estilo God of War, e level design no estilo Metroid, aplica todos ao mesmo tempo sem nenhum polimento e cria uma experiência de jogo verdadeiramente irritante. Além disso, os ambientes do jogo são difíceis de explorar por falta de caminhos claros e de um mapa realmente eficiente, o combate, apesar de divertido – quem não adora lutar com sabres de luz? – é pouco satisfatório no que diz respeito a variedade de opções, e por causa dos níveis desbalanceados de dificuldade, acaba se tornando ou complicado demais ou sem nenhum desafio, e morrer no meio de um combate é a experiência mais ridiculamente frustrante que você vai experimentar, não pela morte em si, mas pelo longo caminho que você é obrigado a refazer só pra recuperar o XP perdido.
Como se os problemas de jogabilidade não fossem suficientes, Fallen Order sofre também com os bugs e glitches tradicionais da EA – no melhor estilo The Sims, com personagens atravessando paredes e portas fechadas, braços e pernas se movendo em direções estranhas, problemas de textura, renderização, etc -, com as opções preguiçosas de customização, com uma trilha sonora que, além de não ser particularmente marcante, frequentemente dissoa das cenas em que aparece, e principalmente com um roteiro simplista, sem clímax ou reviravoltas e repleto de vilões fracos.
Com uma lista tão grande de falhas e defeitos, é difícil imaginar que o jogo tenha algum ponto forte, mas a verdade é que a EA sabia exatamente como atrair seu público alvo, e foi justamente o uso de fanservice, sabres de luz e da Força que salvou o jogo.
Star Wars é uma franquia famosa por ter uma das fanbases mais barulhentas e reclamonas que existem, mas a verdade é que nós, fãs de Star Wars, somos extremamente fáceis de agradar.
Jedi: Fallen Order começa do mesmo jeito que quase tudo em Star Wars começa: com um Star Destroyer atravessando a tela. Dessa vez, a cena de abertura leva o jogador ao planeta Bracca, onde Cal Kestis, nosso protagonista, trabalha como sucateiro. Se escondendo da inquisição por cinco anos desde a queda dos Jedi, Cal abandona o anonimato quando usa a Força para salvar seu amigo Prauf. Sua atitude altruísta atrai a atenção de duas inquisidoras e acaba causando a morte de Prauf no fim das contas, e nosso protagonista é forçado a fugir do planeta com duas pessoas que ele mal conhece, mas que oferecem não apenas uma saída, mas um novo objetivo: ao invés de se manter escondido, Cal é convocado a recuperar uma lista de crianças sensíveis à Força, restabelecer a Ordem Jedi e combater o império, e para isso, ele precisa aperfeiçoar seu uso da força.
Se esse plot base parece familiar, é porque ele é. Star Wars tem se mantido relevante por mais de 40 anos através do uso escancarado de versões repaginadas e simplificadas do mito do herói, e essa tem se provado a fórmula do sucesso da franquia. Em Fallen Order, apesar de essa tática garantir um plot plano e previsível, ela também cria uma situação familiar o suficiente para despertar o interesse do público alvo, e apesar de todos os aspectos no qual deixa a desejar, o jogo consegue manter esse interesse vivo até o final, se valendo de uma ambientação excepcional, personagens interessantes, alguns clichês indispensáveis, participação de personagens especiais e referências a elementos da mitologia canônica.
No quesito personagem, apesar de não ser particularmente inovador, Fallen Order dá ao público exatamente o que o público mais gosta: um personagem jovem, oprimido, assombrado por traumas do passado, em posse de um poder latente que ele ainda não sabe como usar e com uma missão que pode abrir as portas de uma parte do universo de Star Wars que esteve latente até então. Cal não é um personagem principal marcante, mas suas circunstâncias são relacionáveis e sua personalidade gentil, inocente e um pouco atrevida remete fortemente à personalidade de Luke na trilogia original, o que o torna imediatamente cativante. E como nenhum protagonista em Star Wars jamais embarca em uma jornada sozinho, Cal é acompanhado por alguns personagens que são ao mesmo tempo extremamente arquetípicos e essenciais para a narrativa.
Cere, uma ex-Jedi que cortou sua conexão com a Força depois de uma experiência traumática, aparece na figura do mentor, que combate as hesitações do herói com frases filosóficas melosas e genéricas, mas eficazes, e apesar de existir basicamente para motivar Cal, a personagem tem suas próprias histórias a contar e obstáculos a superar. Greez, no papel de piloto, mecânico, cozinheiro e jardineiro, funciona principalmente como alívio cômico, com seus comentários sarcásticos e/ou aterrorizados, mas a verdade é que, juntamente com a Mantis – a nave com jeitinho de lar -, o personagem acaba criando uma narrativa tangencial mais doméstica, focada nos confortos de uma família formada pelas circunstâncias. Merrin, uma das últimas Nightsisters vivas, traumatizada, incapaz de confiar nas pessoas e duvidando da validade das próprias escolhas, aparece como a figura da transformação, indo de inimiga a aliada como consequência não apenas das ações do herói, mas de sua própria busca por crescimento pessoal e libertação.
Dentre todos os aliados, porém, BD-1 é o melhor e mais amável. Inspirado fortemente em BB-8, BD-1 é mais portátil que os modelos usados em jogos mais antigos, e é o único personagem que de fato acompanha Cal em suas aventuras. Como já é tradicional da franquia, o pequeno droid consegue transmitir mais emoção através de seus ruídos eletrônicos do que a maioria dos personagens consegue com palavras, mas ele também traz suas própria contribuição verbal: ao percorrer com Cal os mesmo caminhos que percorreu com seu dono anterior, BD revela gravações com informações relevantes para a jornada e pequenas pérolas de sabedoria convenientemente relacionadas ao conflito do momento.
No lado oposto da história, apesar de falharem terrivelmente como vilãs, a Segunda Irmã e a Nona Irmã acabaram se tornando antagonistas consideravelmente interessantes, não apenas por causa de suas circunstâncias, mas também pelo modo como as personagens foram escritas.
A Nona Irmã, mesmo com uma aparição breve e poucas falas, transmite com muita clareza o desespero de ter sido capturada, torturada e corrompida ao ponto de sua angústia e tormento se transformarem em fúria e força destrutiva, e a inevitabilidade que é sucumbir ao lado negro. Por outro lado, traída e abandonada à mercê do império, a Segunda Irmã pinta uma imagem vívida de conflito, dividida entre o ressentimento de ter sido deixada para trás e o instinto de um verdadeiro Jedi de andar pelo caminho da luz, constantemente provocando Cal com palavras que nada mais são do que um pedido de socorro.
As duas odeiam nosso herói por sua natureza incorruptível mais do que qualquer outra coisa, e por mais que suas tentativas de derrotá-lo/corrompê-lo sejam fracas e ineficazes, elas servem para movimentar o plot numa direção bem específica.
Aqui, é preciso notar que esse excesso de trauma não é acidental. Com o jogo acontecendo num momento posterior à queda da república, as histórias de todos esses personagens servem para consolidar outra narrativa tangencial extremamente relevante: a destruição causada pela ascensão do império, não apenas num nível galáctico, mas num nível pessoal, algo que tinha sido explorado em um certo nível no universo expandido descartado, mas que agora precisa ser abordado de acordo com outros moldes.
Esse drama existencial meio meloso e o sentimentalismo exacerbado não são nenhuma novidade em Star Wars, e Fallen Order acolhe essa característica tradicional da franquia de braços abertos, dando tudo de si para evocar uma imagem potente de desesperança. O principal e mais interessante resultado desse processo é uma humanização da figura do Jedi que é raramente vista, questionando crenças, habilidades e alinhamentos, e produzindo uma versão nova e adaptada do que um cavaleiro Jedi precisa ser para desempenhar seu papel nesses novos tempos.
As marcas da ocupação do império estão presentes também em vários dos ambientes do jogo, e pra quem gosta de explorar, Fallen Order vem com cinco planetas para desbravar – incluindo Kashyyyk, Dathomir e Ilum -, além de curtas incursões a uma arena do Hexion Brood e a uma base imperial em uma lua de Mustafar, e cada um desses lugares tem seus próprios atrativos. Bogano, por exemplo, é onde o jogador encontra BD-1 – e com ele um longo tutorial e um novo objetivo -, além da oficina abandonada de um mestre Jedi que caiu junto com a Ordem e das ruínas de um povo antigo que usava a Força muito antes dos Jedi sequer existirem.
Além de ruínas e tumbas, o jogador se aventura pelas Shadowlands de Kashyyyk, a fortaleza de pedra das Nightsisters, a carcaça de um Star Destroyer, um templo Jedi e muito mais. Cada um desses ambientes reproduz e expande com excelência a essência do universo de Star Wars, do aspecto sucateado das naves e instalações às áreas externas coloridas e cheias de vida selvagem, apostando justamente no apego dos fãs a essa ambientação clássica, mas também deixando sua própria marca no universo. No fim, esse cuidado estético acaba sendo um dos maiores charmes do jogo.
Complementando a ambientação, nós temos o contato direto com elementos do folclore de Star Wars. Esse contato acontece principalmente através dos ecos da força, que remontam, um fragmento de cada vez, a imagem da queda da república e da ascensão do império, mas também é possível encontrar pedaços da narrativa oculta do universo em diálogos com outros personagens, visitas a lugares marcantes – Kashyyyk, lar dos Wookiees, Dathomir, planeta natal das Nightsister e do icônico Darth Maul, Ilum, de onde vem os cristais kyber, mas também o planeta que foi eventualmente convertido em base Starkiller -, ou revivendo direta ou indiretamente momentos históricos importantes como o ataque de general Grievous que dizimou as Nightsisters – narrado pela própria Nightsister Merrin – e a execução da ordem 66 – do ponto de vista de uma versão mais jovem de Cal Kestis.
A decisão de deixar o jogador guiar o personagem através de um flashback que não apenas é o seu maior trauma, mas também é uma parte tão importante da mitologia de Star Wars como um todo, foi ao mesmo tempo um golpe baixo e uma jogada de mestre. A verdade é que o momento não tem tanto impacto emocional quanto provavelmente era intencionado, principalmente por acontecer tão tarde no jogo e de uma forma tão desconexa com o resto da narrativa, mas como ferramenta de fanservice, o efeito da cena é devastador: um mestre conduzindo uma sessão de treinamento, quando de repente sente uma alteração na força, e um dos Stormtroopers na sala recebe a fatídica mensagem da ordem 66, e em apenas alguns segundos, a realidade do personagem – e do jogador – vira de cabeça para baixo: o que havia começado como mais um dia normal repentinamente se torna uma luta confusa e desesperada pela sobrevivência, que termina com um Jedi morto, um sabre de luz danificado e um padawan traumatizado.
Existem, claro, outros momentos de fanservice ao longo do jogo – o holocron com a mensagem de Obi Wan reportando a queda da república e da Ordem Jedi é provavelmente o meu favorito -, mas além desse flashback, apenas um realmente se destaca: o surpreendente – mas nem tanto – “confronto” com Darth Vader. De um ponto de vista de roteiro, a cena é bem aleatória, e não serve nenhum outro propósito além de alegrar o jogador com uma aparição obrigatória do nosso vilão favorito, mas o fanservice aqui é infalível, e se você chegou até esse ponto da história, isso quer dizer que, fisgado por um artifício atrás do outro, você jogou o jogo até o fim.
Fazendo um balanço de pontos positivos e negativos do jogo, dizer que se trata de um jogo ruim seria muito injusto. Consideravelmente prejudicado pelos métodos questionáveis da EA e pelo parâmetro desproporcional estabelecido por KotOR no passado, um jogo que tinha potencial para ser excelente acabou ficando meramente aceitável, mas apesar de todas as suas deficiências, Jedi: Fallen Order ainda é um bom jogo de Star Wars, com seus próprios méritos e relevância para o fandom e para o universo expandido.
E para nós, fãs da franquia, só nos resta esperar que o próximo seja melhor, mesmo sabendo que na prática, é preciso muito pouco pra nos conquistar.
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