Sertânia – Aproveita o farelo e não desperdiça o fubá

Sou suspeito em falar sobre um filme que abraça o sertão arcaico e seus signos. Falo “sertão”, não somente como uma sub-região do meu querido Nordeste, mas também tudo que ela guarda, luta, encanta, sofre, cura, significa e ressignifica até os dias atuais.

Necessito previamente adjetivar o que Sertânia (2018), de Geraldo Sarno é: banditismo e fanatismo aos moldes estudados de Ruy Facó. Um banditismo mais aparente na figura de uma das seis personas nordestinas que permeia o ciclo do gado, o cangaceiro. Mas um Cangaço que remete os tempos (sem ser, pois seu recorte é arcaico, mas atemporal) de Jesuíno Brilhante, de vestes opacas fazendo jus ao preto e branco glauberiano que antecede ao colorido e bordado de Lampião e Corisco. Um coronelismo em mutualismo com esse Cangaço. Um fanatismo discreto no filme, mas exuberante, do sebastianismo para mostrar que o arraial de Canudos ainda continua vivo dentro da promessa do retorno de seu El Rei. A fé consolável sertaneja, que oscila entre as preces ao alto que repreende as heresias proferidas de bocas trancosas. Alpercatas sustentando o xaxado sobre mesas, antecedendo balas que bailam pelo ar empoeirado.

Diante dessas características, o filme enriquece pela bagagem de 82 anos de seu diretor e não foge do homem sertanejo arcaico, porém não degenerado. É arcaico porque é envolvido numa estrutura social, moral e religiosa, por conta do isolamento de séculos. O apreço e devoção pela forma familiar é presente na visão de Antão (Vertin Moura), o protagonista que perde seu pilar materno e principalmente paterno. O falar “antigo”, muitas vezes confundido por errado. Contudo, o diretor Geraldo Sarno brinca com o desmastreamento de seus personagens, mas não em sua degeneração.

Nisso, o filme é quase uma rima com o que Euclydes da Cunha escreve em Os Sertões: “O homem transfigura-se. Impertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas, na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe alta, sobre ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”

Nessa construção de personagens, Sertânia trabalha com o conceito de violência sertaneja (essencial no estudo do ciclo do gado) que tem posição valorosa e face elogiável na narrativa. Ora, se a violência está atrelada a moral sertânica e já dizia Gustavo Barroso “no sertão, quem não se vinga, está morto”, há um elemento presente na história que desconstrói a precoce formação do protagonista: O luto.

É nesse fenômeno que reside o conflito interno de Antão Gavião, antes Antão Jararaca, alcunhas dadas pelo seu Capitão Jesuíno. Seu personagem anseia por luto, por entendê-lo e a busca leva sua história a navegar na barca de Gil Vicente por alto custo de passagem, se for preciso. A necessidade não alcançada de se enlutar o enlata em planos fechados asfixiantes algumas vezes. Entala na repetição de cenas e falas por esse anseio. Os belos planos abertos e percursos da câmera nos dão esse descanso (como telespectador) que Gavião procura. Sua luz branca rompe a tela numa tentativa de clarear uma jornada de pesar, mesmo prejudicado com sua montagem quase experimental que não concilia com a maturidade de suas 1h30m.

O crítico ms. Diego Benevides, em sua dissertação sobre “A Trilogia da Morte de Petrus Cariry: Narrativas de Dor, Perda e Luto Familiar no cinema” cita uma reflexão histórica bem semelhante:

“O olhar para a morte de forma mais dramática e romântica surge a partir do século XVIII, no qual o homem se preocupa menos com a morte de si para pensar na morte do outro. Ariès cita como ponto inicial a relação entre o morrer e erotismo representados na arte e na literatura, a partir do século XVI, que traria o sentido de transgressão para a vida cotidiana, lançando o homem em um mundo violento e cruel.”

Porém, nessa morte e vida Severina, aos olhos do Gavião, a Jararaca não tem tempo pra lamento. Nesse embate de quem bica/pica quem, temos Capitão Jesuíno (Julio Adrião), que lembra o aspecto de Jesuíno Brilhante pela estética e semblante heroico do “Robin Wood” do sertão, mas suas semelhanças estacionam por aqui. Se por alguma ótica o filme pode pecar pela incompletude de seus personagens, é nelas que os sentimentos ancorados pela vida, luto e morte caminham. No vago que os anseiam, Antão e Jesuíno são sombra um do outro numa fotografia semi-documental que permeia entre o real e o febril onírico. Ora confuso? Sim. Mas a escolha de narrar com tal confusão pode nos dizer muito sobre quem estão sendo narrados.

Sertânia é um filme que aproveita o farelo e não desperdiça o fubá.


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